domingo, 30 de agosto de 2009

Camarada Moscou

Quando criança não nutria muita simpatia por gatos. E, desde criança, menos ainda por pessoas que os maltratavam.
Passei a gostar deles quando, em meu romance Rafael Descobre Tudo, apareceu o Sr. Tolstoi, um gato cuja raça não sei se cheguei a definir. A simpatia pelo meu próprio personagem motivou-me a adotar Havana, uma linda e geniosa gata siamesa. Embora Havana já morasse comigo há algum tempo, foi Polyana, minha mulher, quem me fez conhecê-la e me apaixonar definitivamente por elas e pelos gatos. Acho que entendi sua complexidade, aprendi a respeitar seu tempo, apreciar seu engenho e desfrutar intensamente de seu carinho.
Vivemos um tempo no meio do mato, só os três. Ainda não conheço linguagem que me permita compartilhar o que foi aquilo. Voltamos porque sim.
Em São Paulo outra vez, passamos a pensar que Havana precisava também de uma companhia da sua espécie.
Um dia, em visita familiar, minha mãe narrou seu estranhamento quanto a um miado que parecia vir do motor de seu carro. Levou-nos, então, ao quintal e mostrou-nos uma gatinha suja e cheia de marcas da rua que, realmente, alojara-se no motor de seu carro e agora milagrosa e tranquilamente tomava um pouco de leite num potinho de manteiga adaptado.
Sem que precisássemos falar a respeito, no dia seguinte já estávamos, Polyana e eu, tentando socializar Misk e Havana no terraço de nosso apartamento.
Algumas semanas depois, Moscou e Havana pareciam irmãos ou amigos de velha data. Já sabíamos, então, que Moscou não era uma gatinha.
Isso tudo aconteceu faz quase dois anos. Moscou virou um gato grande, belo e forte. Um camarada gentil, humilde, sensível e sábio como poucas pessoas um dia serão. Um companheiro dos que desejo a todos os meus poucos companheiros.
Soubemos, essa semana, por conta de um prolongado acabrunhamento, daqueles que entendo e respeito, que o Moscou está com Leucemia. É virótico e contagioso. Provavelmente a Havana também esteja, embora pareça mais altiva.
Não sabemos nada do futuro, mas agora a tristeza é triste, triste, triste mesmo. Como era triste abandonar uma deliciosa brincadeira no tempo em que eu era criança e não nutria muita simpatia por gatos.
Quando penso nas coisas bonitas da vida que quero apresentar para a minha filha que está chegando não sei bem de onde, penso que o Moscou é uma delas.
Combinei com o soldado Moscou que ele não pode vacilar nessa missão. Mas, se ele não conseguir, condecoro meu camarada, mesmo assim, com as mais altas honrarias.

domingo, 16 de agosto de 2009

A doença de Fidel

Não posso mais guardar esse segredo! E estou disposto às conseqüências que essa revelação me trará. Fidel Castro não está doente, ao contrário, goza de um vigor apenas comparável ao que tinha ainda na Sierra Maestra no ano de 1958.
Encontramo-nos no último dia 21 de Julho de 2009 no café Le Dome em Montparnasse, Paris. Estávamos minha mulher, eu, um renomado escritor cubano com sua esposa e Fidel com uma bela e jovem amiga. Havia também, pelos arredores, uma discretíssima dupla de seguranças. Obviamente o Comandante não se fazia reconhecer, embora chamasse a atenção pela distinta elegância. Sr. Oscar era como deveríamos chamá-lo em público e era como estava em seu passaporte dominicano. Estava sem barba, com um terno de linho cru e um chapéu Panamá de incrível maciez. Portava um bengala fina com cabo de marfim e uma topázio bruto encrustado. Disse que foi presente pessoal de um diplomata turco recebido em Havana em 1972; pertenceu a um sultão cujo nome não consegui guardar.
Tomamos todos, no melhor estilo do verão parisino, Pernod com água Badoit e gelo. O amigo escritor, porém, fez questão de profanar o ritual pedindo também uma taça de vinho rosé. Napoleão certamente cuspiria, ao primeiro gole, aquela vulgar poção. Fidel, no entanto, provou e não achou tão ruim. Confessou que, por puro preconceito, nunca havia tomado o rosé.
Prefiro não entrar em detalhes sobre a razão do encontro ou, ao menos, não sobre o sentido da minha presença na tal tertúlia. Esclareço, apenas, que fazia parte de nossas tratativas não falarmos nem de política, nem de religião e nem de baisebol. Também não seria tolerada qualquer palavra sobre meu avô ou, menos ainda, sobre o irmão dele. Mesmo assim, com o secar da garrafa, fomos falamos um pouco sobre tudo isso. Mas tratamos de muitos outros e mais atuais assuntos. Fiquei surpreso ao saber que até sobre a Cásper Líbero, “Oscar” tinha algo a dizer. Nada muito relevante, apenas impressões colhidas durante entrevistas concedidas a um ou dois velhos jornalistas brasileiros que passaram pela casa. Impressionaram-me, porém, os detalhes, por vezes reveladores, guardados na memória.
Fidel permaneceria em Paris apenas até o dia seguinte, depois embarcava para Salvador na Bahia em vôo comercial e, de lá seguia para Assunción, onde compareceria a uma cerimônia de batizado, a primeira além da sua própria em que estaria presente. Estava ansioso com o evento que seria coordenado por um velho amigo de pouca expressão. Sabia de quem se tratava e aproveitei para enviar, por ele, minhas felicitações pela tardia paternidade. Esclareço, para evitar especulações, que não se tratava de Lugo.
A história do trivial batizado que tanto excitava o Comandante acabou derivando para aquilo que considero, o mais significativo daquele encontro. Num dado momento, meio sem pensar, perguntei a queima roupa, por que é que ele estava deixando o mundo inteiro naquela angustia, para o bem e para o mal, sobre o seu estado de saúde, enquanto ocupava-se de uma cerimônia de batizado. Lembrei do rei espanhol que simulou seu próprio velório para testar a devoção dos súditos e perguntei se tratava-se da mesma vaidade.
Tive um certo arrependimento ao ver que as primeiras lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Fidel. Polyana, minha mulher, tentou amenizar mostrando-nos, atrás de mim, uma foto de Picasso ao lado do velho garçom que nos servia. Não adiantou, Fidel iniciou, já emocionado, um daqueles discurso que o caracterizam. Falou de seus sonhos sobre Cuba e os cubanos; dos livros que o encantaram; dos amores que adiou; das “mierdas” que fez e tolerou; das noites mal dormidas; da incompreensão que o vitimou. Falou, quase uma hora, das mudanças que o mundo sofreu e mais outra hora de sua impossibilidade de compreender o ser humano. Por fim, enxugou os olhos e disse que agora queria viver, incógnito, um pouco de tudo aquilo que renunciou e combateu. Disse que, assim, todos pensando que convalescia em sua residência havaneira, poderia finalmente andar pelo mundo e ver, em seus últimos anos de vida, as grandes coisas que impediram o seu pleno triunfo . Concluiu, restabelecido e bem humorado, dizendo à Polyana que o garçom não parecia ter envelhecido tanto quanto ele. Falou que servir turistas intelectuais talvez seja uma tarefa menos desgastante do que tentar mudar o mundo e os homens. Corrigiu ainda a fala dizendo, meio sem graça, “o mundo, os homens ‘e as mulheres’, é claro”.
O rumo da prosa mudou, Fidel falou que na manhã seguinte ainda fariam, ele a e amiga, um passeio de barco pelo Sena, brincou, em confissão, que faltava muito para que Havana fosse mesmo a Paris do Caribe, “mas, venceremos!”, disse em tom oficial.
O amigo cubano fez questão de pagar a conta. Nos despedimos na boca do metrô Montparnasse. Ficamos, Polyana e Eu, de tentar reencontrar Fidel e sua amiga em Istambul quinze dias depois.
Em Istambul, um litígio com certo taxista acabou nos levando à delegacia e acabamos perdendo o encontro. No dia seguinte viajamos ao Chipre e não tivemos mais noticias dos amigos.
No Brasil os jornais publicaram que durante a inesperada visita de Raul Castro à Bahia, dona Dirce dos Santos afirmava ter visto Fidel Castro ao lado de uma moça nova e com um copo na mão. Não era mentira.

sábado, 1 de agosto de 2009

Aventura no Chipre

Fascinados com a magnífica Istambul, Polyana - no quinto mês de gestação - e eu embarcamos em direção a Erkan, no lado turco do Chipre. Nossa idéia de lado turco e lado grego não era mesmo muito científica, tampouco parecia tão ingênua. As informações disponíveis não davam conta da verdadeira magnitude da divisão.
Precisavamos chegar a Nicosia, capital do país, que estava algumas dezenas de quilômetros de onde desembarcamos. De lá pegaríamos um carro para cruzar a ilha até Paphos, berço de Afodite, nosso destino final. Até então não havia explicação para não termos conseguido uma passagem direta de Istambul para Nicosia ou para Paphos. Todas as disponíveis nos levariam primeiro a Londres, o que parecia não ter o menor sentido já que estávamos a menos de duas horas do Chipre. Sendo assim, optamos pelo que parecia mais sensato: escolher um destino cipriota qualquer e, de lá, por terra, nos arranjarmos para atingir nosso objetivo.
Ao chegarmos em Erkan, as coisas começaram a se esclarecer. Embora estivéssemos próximos da capital, não havia meio de transporte oficial até lá. Estávamos do lado turco da ilha, ocupado militarmente desde 1974. Aquele pedaço é, na verdade, um enclave turco no Chipre não reconhecido internacionalmente. As relações diplomáticas entre os dois lados, guardadas as proporções e peculiariadades históricas, são como as das duas Coréias. Cruzar a fronteira, então, tornou-se uma operação mais complexa e mais delicada.
Após negociações em condições desfavoráveis, conseguimos um motorista com duas identidades que se dispôs a realizar o nosso transporte através da fronteira. Entre outras coisas, a operação exigiu uma parada para a substituição da placa do veículo, afim de que ele pudesse circular do lado grego. Num dos três postos da aduana fui convocado a deliberar sobre permitir ou não o carimbo de entrada em nossos passaportes. Embora a questão causasse espécie, achei que a negativa se tratava de uma precaução que nos preservaria diante das autoridades turcas caso retornássemos pelo mesmo caminho. Como não seria o caso, por reflexo e felizmente, permiti os tais carimbos.
Três horas depois do desembarque, tendo percorrido um longo, árido e tenso trajeto, saímos do Hotel Hilton com um carro alugado para finalmente iniciar aquilo que deveria ser uma belíssima viagem pela costa da ilha mitológica até a maravilhosa cidade de Paphos.
Qual o quê! Além do Chipre adotar o trafego de mão inglesa, possui estradas movimentadíssimas, de alta velocidade e que se estendem apenas pelo interior desértico do país.
Depois de duas horas de silêncio, mãos úmidas e paisagens atacâmicas, chegamos finalmente a Paphos. O sonhado paraíso era como um ibernal subúrbio de Londres. A colonização inglesa tardia tinha dixado suas piores marcas: frieza, maximização de dividendos, pouca procupação estética e desprezo absoluto pela população local.
Tratava-se de um balneário decadente e de grande magnitude - o que é mais assustador -, para onde se destinavam ingleses de classe média, brancos, mal-tatuados e fartos em busca de sol, qualquer sol.
O mito de Afrodite havia criado um fluxo de turistas britânicos casadoiros, que para lá se dirigiam em busca de matrimônios abençoados. Mas isso deve ter tido seu alge nos anos setenta e o que encontramos, na verdade, foi apenas o patético rescaldo dessa mística. Chegamos a presenciar um grotesco casamento praianano com inglesas vestidas de longo, e nos servimos de - outrora glamurosas - limusines sucateadas convertidas em taxis comuns.
Hospedamo-nos num grande hotel, que em algum momento também teve seus dias de glória, mas encontrava-se largado às traças e a outros insetos desconhecidos com aparência menos inofensiva.
Tudo, enfim, era péssimo! Para completar, soubemos que, no Brasil, nosso querido gato e amigo, Moscou, estava muito doente, porém sem diagnóstico. Pareceu-nos, então, que não conseguiríamos permanecer alí o tempo que havíamos previsto. Mesmo assim, como acontece com que viaja com a companhia certa, resistimos e acabamos desfrutando. Conhecemos poucas e boas pessoas; rimos de nossa desgraça gastronômica; nos apropriamos de um digno e curioso pedaço de praia; comemoramos êxitos cotidianos e fugazes em lavanderias e cyber-cafés e, afinal, passamos pelo menos um dia no Cripre que habitava nossa imaginação: um sítio arqueológico com ruinas gregas clássicas; calor mediterrâneo; árvores com flores belas e perfumadas e o mar de Ulisses ao fundo. Simplesmente indescritível!
Retornar, também não foi tarefa fácil. Quando tentávamos embarcar para Athenas, no aeroporto internacional de Phaphos, os oficiais da aduana não encontravam nosso registro de entrada em seus computadores. É claro que que não encontrariam, afinal, entramos no país por um caminho não convencional e de maneira quase clandestina. Após uma hora de tensão e espera, sem que o "sistema" encontrasse solução automática, só fomos liberados porque em nossos passaportes havia carimbos oficiais de entrada: aqueles que, na fronteira, consenti no susto. Embarcamos, assim, aliviados e felizes para a Grécia.
Moral da história: não recomendamos aos amigos visitar o Chipre, mas nós voltaremos.