sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Rouba, mas não faz

"Conheço o monstro porque vivi em suas entranhas"
José Marti

É incrível a sabedoria popular! Quando a expressão "rouba mas faz" foi associada a Paulo Maluf anos atrás, tudo que fiz foi lamentar a ignorância e a mísera compreensão política do nosso povo sofrido. Não me ocorreu, como faço agora, tentar entender o significado profundo do slogan.
Recorramos à consagrada teoria. Max Weber entendia que as sociedades em algum momento transitariam do estado patrimonialista para o burocrático. Basicamente é o seguinte: no começo os dirigentes administram tudo como se fosse patrimônio pessoal. Se precisam construir uma ponte, contratam a empresa do seu irmão. Se precisam de um conselheiro financeiro, empregam seu brilhante sobrinho. Com o passar do tempo e o avançar das demandas democráticas é preciso mudar um pouco o modelo: se precisam construir uma ponte, fazem uma licitação para contratar a empresa do seu irmão. Se precisam de um conselheiro financeiro, abrem um concurso público para empregar seu brilhante sobrinho.
Em outras palavras, a burocracia se estrutura baseada no mérito e na transparência e tem por objetivo conter os apetites patrimoniais dos gestores públicos. Ela veio, enfim, para que o administrador "faça, sem roubar". Na prática, porém, o que a burocracia faz é empedir a razão mesma pela qual a absoluta maioria das pessoas ingressa no poder público. Isso não faz com que a pulsão delinquente do sujeito seja contida, ao contrário, faz com que passe o dia inteiro arquitetando mecanismos para atingir seus objetivos passando ao largo dos controles burocráticos.
O resultado disso é que verdadeiramente não sobra tempo para "fazer", uma vez que "roubar" exige tanto esforço e tantas horas de trabalho. São reuniões estratégicas, assembléias, comissões, conselhos, grupos de trabalho, etc... cujo principal objetivo é garantir melhores condições individuais para o exercício daquilo que realmente motivou o engajamento público da maioria dos dirigentes.
Desse modo chegamos a um ponto em que a burocracia, cada vez mais eficiente, está tornando quase impossível a realização dos interesses patrimônias dos gestores. Quase impossível, mas com dedicação e obstinação, sempre ainda possível.
As tarefas vinculadas ao interesse público, nesse caso, além de continuarem não sendo prioritárias, tornaram-se um incômodo quase insuportável. Um encosto espiritual. Um entrave na agenda de cada dia. Mas, para a alegria dos gestores, hoje já é possível terceirizar essas odientas tarefas a uma OSCIP cheia de dignidade e disposição. Além disso, a entidade do Terceiro Setor certamente estará disposta a devolver ao generoso dirigente que operou sua contratação algo daquele velho e benfasejo patrimonialismo. Se o retorno patrimonial não for direto e em espécie, será através da contratação da empresa do irmão e do acolhimento ao brilhante sobrinho.
Em resumo, o slogan "rouba mas faz", é anacrônico, romântico até. "Roubar" quantinuará sendo a regra principal, o fogo sagrado da confraria, mas "fazer" já não é mais tarefa do homem público. Falta-lhe tempo para isso.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Aula de Civilidade


Um curto passeio a pé pelas calçadas da Avenida Pulista é uma aula prática sobre a civilidade paulistana. Não digo que aquilo que se aprende valha só para São Paulo e o seu sóbrio e moderno povo, mas aqui é assim:
Motoristas de ônibus tendem a ignorar os veículos de passeio e seus condutores. Esses, feridos em sua potência, avançam para cima dos motoqueiros, que, por sua vez reclamam em bando dos maus-tratos. Os pilotos de motocicleta, porém, desconhecem a existência de ciclistas. Os ciclistas, que gozam de maior prestígio junto aos meios de comunicação por sua opção consciênte e intrépida, conseguem angarear alguma empatia pública com o seu drama no trânsito, mas não conseguem respeitar um farol de pedestre e não se acanham em tomar a calçada quando lhes apraz. Resta, por fim acrescentar que também entre os pedestres vigora a lei do "eu não vou desviar, desvie você". Por isso, é impossível andar sem choques de média intensidade no ombro, ou sem ampliar alguns quilômetros o trajeto ziguezagueando pela calçada. Experimente.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O valor da solidão


Proponho uma inversão do valor negativo socialmente consagrado da solidão.
É verdade, ninguém te entende. Tirando um amigo ou outro, num momento ou outro, ninguém é capaz de intuir a sua angústia; compreender os seus dilemas; sentir suas dores; gozar contigo seus pequenos triunfos na medida em que eles se apresentam grandiosos a você mesmo. Pergunto, então, porque insistir em esperar tudo isso de algum outro e não de você mesmo? Não será um vício lamentar a incompreensão?
Penso que a solidão é, ao contrário do que dizem dela, amiga e libertadora. Ela te coloca frente a frente contigo mesmo e te propõe um auto-abraço ou nenhum abraço. Te desafia a gostar ou não de ti mesmo. Apreciar ou não a imagem que reflete só de você. Desfrutar ou não da própria companhia.
A solidão propicia o exercício do diálogo com o mais complexo dos seres com quem a vida te fará dialogar que é você.
Todos os outros desafios e dádivas não serão vividos, enfrentados e desfrutados plenamente sem que você tenha se entendido contigo.
Aprecie, portanto a solidão.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Freud e Garcia Marques


Tenho pensado em uma espécie de "Terapia Literária". Talvez não seja nada inovador, aliás, a esse respeito, acredito que nossas criações parecem tanto mais brilhantes e geniais quanto mais desinformados somos. As artes plásticas, há tempo, são utilizadas clinicamente, o mesmo com o teatro e a dança. Creio que a literatura também pode ser de grande utilidade no tratamento de patologias mentais.
Não se trata de procurar apoio para ilustrar síndromes e fobias nas obras literárias, como ouvi dizer que andam fazendo com as Mil e Uma Noites e já fizeram com o Chapeuzinho Vermelho. Não. Trata-se de uma terapia através da produção da literatura e não do seu consumo, ainda que isso também tenha espaço no tratamento.
Imagino algo como uma mistura de consultório psicanalítico freudiano com oficina literária de Gabriel Garcia Marques. Ainda não sei, contudo, se o processo deve ser individualizado ou em grupo. Conforme avançar com a idéia devo chegar a alguma conclusão. Não descarto a possibilidade de utilizar as duas formas de atendimento.
Minha experiência como analisado revelou-me a importância da auto-consciência sobre a forma com que venho vivendo minha própria vida. É a partir dela que sou capaz de perceber os erros e acertos e, mais do que isso, as minhas reais motivações de ação. Vejo então quando sou autor da minha própria história e quando a autoria da minha trajetória é roubada por outras versões de mim mesmo. Versões cuja falta de talento para escrever a história que desejo já ficou comprovada em outros capítulos.
Minha experiência de escritor tornou-me clara uma das maiores dificuldades da escrita: escolher e tornar crível o narrador. Nada me parece mais desafiador ao escrever do que alimentar a vitalidade do narrador em detrimento do ego de quem escreve. É preciso, antes de inventar uma história, inventar um narrador capaz de contá-la. Isso exige do escritor a capacidade de construir uma outra consciência que não a própria e, ao mesmo tempo, manter sob controle e vigilância essa consciência. Se o narrador é o assassino, essa consciência de assassino só surgirá quando estou escrevendo. Aprendo a desenvolver, deliberadamente, esquizofrenias absolutamente controladas.
A excência da Terapia Literária, então, está no seguinte: ao praticar literatura, ou seja, ao tentar escrever histórias e, portanto, encarar os desafios de uma narrativa, o paciente terá mais facilidade para compreender a "dinâmica" dos seus próprios problemas psicológicos. A partir daí, o arcabouço freudiano poderá ser apresentado como o conjunto das intercorrências que costumam dificultar a construção e consequente narração de uma vida sadia.
O resultado esperado é que o paciente, aos poucos, vá assumindo a autoria de sua própria história.
Não se objetiva, porém, qualquer prodígio do ponto de vista literário, trata-se apenas de exercício com fim terapeutico.