domingo, 28 de março de 2010

Projetos Musicais S/C Ltda


Ilustração: Jo Fevereiro
 
Estou intrigado com uma coisa: qual será o real significado da atual mudança de nomenclatura dos coletivos musicais?
Estou chamando de coletivos musicais as pessoas que se reunem para tocar instrumentos e cantar, um hábito bastante comum e antigo entre os seres humanos.
Esclareço a inquietação sem retroceder muito no tempo. Décadas atrás falava-se em "conjuntos" musicais; também já se usou dizer "grupos" de música; os mais jovens se acostumaram com a idéia de "bandas" desse ou daquele estilo. Hoje um novo termo vem se consagrando: "projetos musicais".
Será mais um traço da chamada pós-modernidade que, em sua pressa, só educa os olhares e os ouvidos para o que é efêmero? Sempre que ouço o termo, ainda que associado a excelentes resultados musicais, não deixo de pensar que trata-se de algo feito para não perdurar. Quem ouviu, ouviu.
Talvez essa dificuldade para construir, cultivar e suportar relações sólidas e duradouras que marca o nosso tempo tenha invadido também os coletivos musicais. Não há mais como nem porquê obrigar a convivência das próprias vaidades e idiossincrasias com as dos demais integrantes de um grupo. Temos um projeto musical; nos reunimos, ou às vezes nem precisamos desse contado todo, e realizamos o "projeto". Depois cada um segue o seu caminho e foi bom - ou não - para todo mundo.
É justo, mas não é animador, como dizia um personagem de Gorki. Não se trata de lamentar, afinal, nem sei o que se perde e o que se ganha com isso, talvez a Billboard saiba, ou melhor ainda as publicações que sobrevivem das intrigas e querelas internas dos grupos. Tento apenas compreender.
Só não me animo por pensar que essa lógica se parece um pouco com a dos grupos de trabalho do ambiente corporativo, organizado não mais de forma hierárquica e sim matricial, com lideranças alternadas, criações coletivas e outras histórias. Tudo em função de cada projeto.
Não duvido da eficiência do formato, nem nas empresas, nem nos "empreendimentos" musicais. Mas penso que, se no primeiro caso, a eficiência tem medida certa e critérios objetivos de apuração, no segundo não precisava ter. Aliás, entre outras coisas, era a falta disso que costumava filiar a música à arte.
Prevejo para os próximos anos um curso universitário concorrido de Arquitetura de Empreendimentos Musicais, como já existe para DJs e, quem sabe, para Street Artists.
Também não gosto muito, mas prefiro quando é o mercado quem busca inspiração na arte.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Lição do Caracol


Ilustração: Jo Fevereiro

Estava a meio quarteirão de casa, andando meio apressado pela calçada, quando vi um caracol cruzando lentamente o meu caminho. Atenção para o que vou dizer agora: o caracol era tão grande que parecia um fusca. Não estou brincando, é verdade! Posso garantir que nenhuma substância afetava minha percepção naquele momento. Ele tinha pelo menos um palmo de comprimento e transportava sua moradia que mais parecia um desses triplex com 5 vagas e espaço gourmet que os folhetos de pré-lançamento costumam anunciar nos Jardins.
Fiquei paralisado, mesmo porque, enquanto aquele colosso de antenas colossais se arrastava indiferente, meu caminho permaneceu realmente interrompido. Tive um pouco de medo e não me envergonho por confessar, o bicho era  estranho mesmo e eu não imaginava que isso existisse, se imaginasse, seria numa ilha do arquipélago de Java, perto de onde vivem os lagartos de Comodo e outras criaturas pernósticas. Mas ali, atrás do Maksoud Plaza, era como se de repente a fronteira entre a realidade e a ficção tivesse sido rompida.  Naquele instante não me pareceu impossível que ele simplesmente me cumprimentasse pelo nome e seguisse o seu caminho; que revelasse uma profecia catastrófica a meu respeito; que me pedisse para levá-lo ao meu líder, ou que cuspisse em mim uma gosma mortal.
Assim que minha confusão mental se dissipou, num reflexo adquirido na contemporaneidade, adotei aquele ar de indiferença que aprendemos a fazer diante da diversidade, por mais diversa que ela seja, e passei a olhar se não havia alguém filmando minha reação para colocar no YouTube. Reparei se não tinha nenhum fio de nylon esticado na calçada e se os lentos movimentos do ser não revelavam alguma sincronia robótica. Uma outra vez fiquei procurando o miado de um gatinho que parecia em apuros e descobri um celular escondido na grama do jardim emitindo o som, enquanto isso o porteiro e o servente do prédio riam da minha cara. Dessa vez, não. Não havia nada.
Livre do pavor imediato e natural diante do desconhecido e do pavor secundário e social do ridículo, acompanhei o imenso caracol até que ele chegasse ao mato que almejava, com a ansiedade típica de um caracol. Esperei até que ele se perdesse no meio da relva. Depois esperei um pouco mais, olhando o rastro úmido deixado na calçada. Segui, então, o meu caminho, eufórico e maravilhado, como uma criança que viu mesmo uma coisa que nenhum adulto vai acreditar.
Passo todos os dias pelo mesmo lugar e, por mais apressado que esteja, sempre diminuo a passada para ver se encontro de novo o caracol. Não encontro, mas enquanto procuro por ele, penso que aquele bicho estranho deve estar onde queria estar, sem ter ido de pressa e sem ter ido muito longe.
Faço desse pensamento a lição que aquele magnífico caracol me ofertou.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Cordialidade vem mesmo do coração?


Ilustração: Jo Fevereiro

Sempre achei a cordialidade uma virtude admirável nas pessoas. Uma saudação matinal; uma porta aberta de elevador; uma prioridade concedida na passagem; um sorriso gratuito, um pequeno gesto afável. Tudo isso quando vem do cór torna o convívio entre as pessoas não mais humano, porque o contrário disso é tão humano quanto, mas pelo menos mais estético, elevado e prazeiroso. Continuo achando tudo isso. Mas ultimamente tenho sentido a necessidade de pensar um pouco mais a respeito. O conflito básico é o seguinte: em que medida minha própria cordialidade me impede de marcar posição diante de pessoas que, embora também cordiais, usam desse código para angarear cumplicidade e assim revelar, no instante seguinte, posturas e convicções que considero execráveis?
Posso exemplificar. Um dia desses uma simpática vizinha aproveitou a cordialidade estabelecida no curto trajeto entre o térreo e o nono andar para perguntar se nossa filha, de quatro meses, não se assustava com a cor da pele da moça que nos ajuda em casa. A pergunta pareceu-nos tão descabida e surpreendente que só tivemos tempo e reflexo para dizer, cordialmente, que não.
Passado o tempo, estávamos Polyana e eu absolutamente transtornados não com a pergunta da velhusca, mas com nossa insuficiente resposta. O que queríamos mesmo era ter dito: "não minha senhora, nossa filha ainda não teve tempo para ser envenenada por essa substância que a senhora acaba de flatular e faremos o possível para imunizá-la tanto da meningite e da varíola quanto desse maldito preconceito. E, a propósito, não se incomode mais em nos cumprimentar sua fascista decadente e nociva. Estamos em trincheiras opostas".
Confesso que pensamos nessa resposta em termos muito menos cordiais do que apresento aqui. Na verdade nem mesmo o cuspe na cara e a expulsão sumária do elevador foram descartados em nossa fantasia de reparação.
No dia seguinte ela nos cumprimentou com a cordialidade de sempre e já não havia mais ocasião para marcarmos nossa posição como gostaríamos, afinal, nós apreciamos a cordialidade.
Persistem assim as seguintes questões: não será esse apreço pela cordialidade o resquício de uma criação obsoleta? Em que medida a cordialidade é um vício que reprime nossa necessária expontaneidade? Estou reduzindo erroneamente a cordialidade ao simples encontro fortuito entre desconhecidos? Somos cordiais porque aspiramos o afeto de todos? Se restringirmos nossa cordialidade apenas aos iguais, seremos ainda cordiais?
Enfim, agradeço a você meu gentil leitor, mas vá às favas, se nada do que eu disse te fizer pensar no assunto.
Cordialmente,

domingo, 14 de março de 2010

Zé dos limões


Ilustração: Jo Fevereiro

Meses atrás, saía do estacionamento de um shoping quando vi um garoto com não mais do que dez anos chorando a plenos pulmões na beira da calçada. Porque a coisa pareceu-me séria, encostei o carro e desci para ver o que é que tinha acontecido. Foi difícil fazer o Zé me contar sua dor. A cada frase, recobrava o choro com fôlego renovado, precisei dar-lhe um chaqualhão para que então me explicasse que um garoto mais velho havia lhe roubado não apenas os trocados que conseguira durante o dia, mas também os preciosos limões que sua mãe dera-lhe para vender.
Embora dramática a história, fui instantaneamente invadido por uma espécie de beatitude. Estava ao meu alcance curar a asa partida do pequeno anjo. Fizemos juntos as contas do dinheiro perdido e do quanto arrecadaria com os limões roubados. Exatamente R$ 28,00 livrariam o mini-operário das sanções do feitor que tanto o apavoravam. Com R$ 30,00 dei por encerrado o problema. Zé não foi capaz de perceber a grandiosidade do meu gesto, despediu-se de mim sem grande entusiasmo ou gratidão. Pus a falta de reconhecimento na conta das injustiças do mundo e me senti maior ainda por isso.
Ontem, quando saía do mesmo estacionamento, vi o mesmo Zé, na mesma calçada, chorando do mesmo jeito. Na hora entendi tudo. Primeiro me senti um tremendo idiota, lesado por um garotinho de dez anos; no instante seguinte achei engraçado e quase reverenciei a astúcia do Zé. Depois foi batendo uma tristeza por pensar que, seja como for, o Zé é só uma criança cuja ingenuidade foi sequestrada pela dureza da vida.
Alguma coisa dentro de mim, contudo, insiste em pensar que o pobre Zé continua vítima do mesmo malfeitor que, da outra vêz, roubou sua alegria e suas possibilidades.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Somos todos meio matutos


Ilustração: Jo Fevereiro

Andei pensando esses dias sobre o quanto nós, brasileiros, somos ainda matutos. Isso pode ter uma leitura otimista e romântica, como quase sempre tem mesmo, mas também pode ser visto de maneira crítica e suspicaz.
Esclareço que estou considerando "matutia" simplistamente o vínculo com a terra, com o tempo natural e com tradições ancestrais.
Todos nós conhecemos algumas plantas e suas possíveis aplicações; resmungamos por não poder dormir na hora precisa em que estamos sonados, ou comer quando sentimos fome; sabemos de alguma simpatia para parar de chover no meio do feriado. Acredito que essas coisas sejam realmente mais difícies para um cidadão de Manchester.
Fiz, imprecisamente, as contas e concluí que pelo menos um bisavô de quase todo brasileiro com mais de 20 anos veio do campo. Faça o teste. Se você ficou de fora e está lendo esse texto, ou está amaldiçoado pela família, ou está espionando para saber o que anda pensando a plebe.
Tenha em conta que cem anos atrás esse país era todo uma grande fazenda. Até os mais conectados entre nós estão geracionalmente ainda muito próximos da vida rude e rural. Mesmo com estudos em Paris, ainda se ouve questões relativas a uma velha tia do interior que resgata algo em nós.
Talvez seja exatamente isso que faz do Brasil um país jovem. Trata-se de uma juventude que tem a ver com a trajetória das nações que: são infantis quando plenamente rurais; jovens quando transitando como nós, e velhas quando plenamente urbanas e asfaltadas.
A crítica e a suspeição surgem diante da seguinte questão: essa nossa jovialidade meio matuta é essencialmente boa, mas ao invés de servir a nossa autonomia e a nossa liberdade, pode restringir-se, como não é difícil, à estagnação ou ao simples arremedo de exemplos dados.
Correndo os riscos da adesão ao eurocentrismo e da introjeção do colonizador, sou hoje capaz de entender o arrebatamento de qualquer alemão pelo "exotismo" da nossa gente. Somos cheios de ímpeto e de sonhos; sensuais e românticos; alegres, maliciosos e esperançados. Somos agora o que foram muitos povos séculos atrás. Personificamos o passado tão remoto de um sueco, que ele não é capaz de se reconhecer entre nós. Perde-se, então, fascinado e feliz em algo que lhe parece alheio e misterioso.
Oxalá saibamos amadurecer.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O Carlos virou mendigo


Ilustração: Jo Fevereiro

Conheci o Carlos quando tinha 18 ou 19 anos, eu estava na faculdade de História. Era um tempo em que tudo parecia mais simples: de um lado estavam as mazelas do mundo e o capitalismo como arquiteto delas; do outro, a vida bacana que o socialismo parecia poder proporcionar. Entre os dois, apenas uma questão de vontade ou de falta de.
Carlos era executivo de uma multinacional americana. Rico, culto, bom e cheio de maneiras elegantes. Mais nobre do que burguês. Meu ódio de classe não foi capaz de abarcá-lo e acabei me tornando seu amigo. Que bom!
Um dia ele me disse que havia cansado de vender pó de arroz para quem não tinha nem arroz para comer. Sabia a resposta certa num certo treinamento em Nova Iorque, mas deu, de propósito, a resposta errada. O dilema proposto era o seguinte: Um subalterno era a pessoa indicada para abrir uma nova filial em outro estado. Isso significava uma considerável promoção com aumento significativo de salário. A filial seria desativada seis meses depois por decisão estratégica e o subalterno seria desligado sem mais. O empenho total do funcionário era condição absolutamente necessária. Feliz e lisonjeado, o subalterno comenta com o executivo, informal e ingenuamente, seu projeto de hipotecar a própria casa para proporcionar à família uma vida mais próspera e melhor no novo estado. Pergunta: expor ou não, ao funcionário, os reais objetivos e intenções coorporativas?
Carlos, impertinente, mais do que demitido, acabou excomungado pelo mercado. Perdeu todo o seu status e, com ele, a família e a vida que lhe parecia sua. Foi cursar, aos cinquenta anos, Sociologia no prédio ao lado do meu. Tornou-se referência para mim.
Chegamos a trabalhar juntos em alguns projetos que nos renderam pouco dinheiro e muito prazer. Aprendi com ele a apreciar a música clássica; a investir em minhas metáforas literárias e a sair dignamente de um restaurante quando os preços do cardápio são além das minhas possibilidades. Aprendi bem mais.
Há cinco anos perdi o contato com o Carlos por conta de nossa falta de talento para as convenções e pela similar apreciação da liberdade própria e do outro.
Na semana passada, chamou-me a atenção um homem que revirava o lixo em frente ao Ponto Chique do Largo do Paissandu. O mendigo tinha calças de veludo e um sapato marrom com fivelas que um dia foram douradas. Num certo momento percebeu que seu comedido garimpo dificultava a passagem de uma senhora que, escorada em sua bengala, ensaiava alargar o trajeto para desviar da cena/obstáculo. Eu vinha logo atrás e notei que o desgraçado não apenas interrompeu sua pesquisa, mas também brindou a senhora com um sorriso gentil e respeitoso, abrindo caminho para o seu lento deslocamento.
Não vi se ela retribuiu, mas vi que era o Carlos. Ficamos frente a frente e meu reflexo foi o de abrir os braços. O dele também, mas no instante seguinte ele olhou para si mesmo e preferiu interromper o abraço. Senti como se tivéssemos nos abraçado assim mesmo. Ficamos alguns instantes nos olhando sem que nada fosse dito, quase nos abraçamos pela segunda vez. Só então eu falei: "Carlos, Carlos, meu camarada, como foi que isso aconteceu?". Ele respondeu com o seu sorriso habitual: "E como não aconteceria, meu querido amigo?". "Pois bem, meu guru, e o que eu faço agora? Te ofereço um almoço... algum dinheiro... moradia provisória... emprego...?". "Um café, um café expresso e curto, se você puder e não se incomodar".
Encostamos no balcão do Canelinha sob os olhos severos e contrafeitos do barman. Carlos bebeu seu café como um diplomata dinamarquês. Tive vontade de fazer-lhe mil perguntas, mas não fiz nenhuma, esperei que ele acabasse o seu precioso café, para então começarmos a tratar de como resgatá-lo de tão indigno infortúnio. "Então, meu amigo - disse ele ao depositar a xícara no balcão - como está sua vida? Você já entendeu porque o Eric Satie é um compositor frívolo? Assumiu-se como escritor que é? Deixou de se preocupar com o julgamento alheio sobre suas atitudes? Ou simplesmente parou de pensar em tudo isso?".
Minha resposta com a cabeça foi negativa para todas as perguntas. Carlos, então, estendeu o braço sobre o meu ombro e prosseguiu "não se preocupe, meu caro, isso virá com o tempo, mantenha a vitalidade e a serenidade, é assim mesmo. Se um dia precisar conversar, estou sempre por aqui nesse horário".
Diante do silêncio restabelecido, Carlos quase levou a mão ao bolso, mas rendeu-se a sua condição erguendo meio constrangido as grisalhas sobrancelhas. Paguei a conta com dinheiro trocado e saímos do café. Cada um em uma direção. Parei e virei para trás "Carlos! - disse alto quando ele já se ia - eu encontrei aquela mulher e temos uma filhinha". Ele também parou e se voltou, agora com um sorriso maior e resplandescente - "Ah! Isso é bom, meu amigo. Isso é mesmo muito bom!". Seguimos então nossos caminhos.
O Carlos virou mendigo e é, ainda, uma referência.