quarta-feira, 23 de junho de 2010

Abracadabra

As palavras já foram consideradas mágicas, quer dizer, detentoras de poderes mágicos. Em agrupamentos humanos remotos, pessoas economizavam até na divulgação de seus próprios nomes para evitar feitiços e sortilégios. Sob o efeito da palavra ouvida, guerreiros já provocaram e finalizaram guerras. Até hoje ainda persistem truques para dizer o nome de um morto sem correr risco de ônus mágico, "que deus o tenha". "Saúde" anida se profere gratuitamente a quem espirra.
Por alguma razão, quem sabe a profusão de palavras más, ou talvez a melancolia de quem costuma ser rigoroso demais consigo mesmo, estamos mais suscetíveis, em nossos tempos, à maldição do que à bendição. Ecoa mais nos nossos ouvidos e corações a injúria e a ofensa, do que o elogio e as palvras de afeto, perdão e compreensão.
Lembramos no nosso dia da única pessoa que não respondeu ao nosso bom dia e de nenhuma das outras que o retribuíram com sorriso. Da que nos sonegou palavra e não das que nos agradeceram por qualquer pequena gentileza.
Sobrepesamos a crítica, mas o reconhecimento não movimenta os pratos da balança. Ficamos incomodados com o que talvez seja uma ironia maldosa, mas não nos permeia com a mesma facilidade uma evidente e bondosa homenagem. Não nos casamos mais cada vez que ouvimos "eu te amo", mas estamos prontos a nos separarar ao primeiro "tenho dúvidas quanto ao meu amor".
Fica então a seguinte pergunta: se as palavras ainda carregam magia consigo - e acho que carregam sim -, porque não apreciar mais e melhor os seus bons encantos?

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Uma boa lembrança do alto

Uma vez acordei numa cabine de trem no Vale da Osta na Itália e me deparei com um senhor de chapéu e bengala sentado no banco da minha frente. Tomamos, juntos, um mágico café solúvel e ficamos logo grandes amigos. Ele me falou de sua participação na Primeira Guerra, do Patuá, dialeto da região, e me explicou sobre os telhados das casas. Não me lembro bem da explicação, mas não esqueço do reflexo do sol nascente na neve que se depositava naqueles telhados, pareciam casas de maçapão banhadas com calda de caramelo. Eu também estava nascendo, tinha só 18 anos.
Descemos, ambos, em Courmayer - acho que era esse o nome da vila -, eu não tinha destino, ele visitava uma filha. Ele me convidou para o almoço. Eu, mesmo sem destino, já era arredio com os convites, agradeci declinando. Ele entendeu, compreendeu.
Identificando-me, então, como andarilho do mundo, o que me chocou e fascinou, disse que os andarilhos ganhariam mais se tivessem disposição para escalar as montanhas. Nessa hora apontou para uma delas. Falou que, do alto, a solidão é a mesma, mas o silêncio é maior e visão mais ampla. Eu não disse nada mas, no mesmo instante, me convenci que deveria subir ao alto da pequena montanha que o seu indicador indicou.
Quando nos despedíamos o improvável se fez presente. Perguntou meu velho amigo qual era o meu nome, não, meu sobrenome. Ao responder, lancetei seus olhos, dos quais escorreram, não, jorraram lágrimas.
Surpreendeu-me o velhinho explicando que, agora sim, nosso encontro fazia sentido, pois sua maior perda durante a guerra tinha sido o seu grande amigo Molon.
Subi com sacrifício aquela montanha. Lembro-me da fadiga e dos pedaços de gelo que mataram a minha sede.
Lembro-me do menor ruído que já não ouvi e de uma visão que, em sua amplitude, tornou invisível, naquele momento, meu mais querido amigo.