sábado, 28 de agosto de 2010

Abrir mão da vida para não crescer


Ilustração: Jo Fevereiro

Acredito mesmo que a adolescência seja o estágio maravilhoso em que ainda temos o direito de achar que a vida pode ser perfeita. Por isso é tão difícil abandoná-la. Não falo de cronologia, falo de maturação psíquica.
Que horror ter que encarar as imperfeições das pessoas perfeitas; as absurdas falhas das mais belas ideologias; as inconsistências estruturais nos melhores projetos; o ardor do trabalho inerente a qualquer realização; os conflitos em que somos lançados quando só queríamos a paz; a necessidade de mudar quando desejamos simplesmente permanecer; obrigações para quem só se sente no direito; os próprios erros, quando ainda só o resto é que parece estar errado.
Quão impossível pode ser uma vida feliz em tão adversas condições. Amadurecer é, sem dúvida, uma proposta indescente!
Deve ser por isso que muita gente insiste em não amadurecer. Entre abandonar as ilusões para lidar com o mundo real e evocar as mais elevadas e transcendentes razões para continuar onde se está, a segunda possibilidade, sem dúvida, é a melhor. Ela ainda nos eleva acima dos outros, tão racionais e pragmáticos. Além disso, sempre haverá por perto outros adolescentes, de qualque idade, reforçando nosso asco por esse mundo tão careta, belicoso e equivocado.
Garanto: há grandes desfrutes que só o outro lado propicia, e revelo que os seus melhores são para os que conseguem cruzar o caminho sem perder a ternura pela vida, que é o melhor legado que a adolescência pode deixar. Quem passa sem se abandonar por completo encontra outras formas de felicidade.
O tempo é inexorável, ele vai passar, quer queiramos ou não. Capazes de perceber, ou não, ele exigirá de nós que sejamos diferentes em cada fase: crianças, adolescentes, adultos e velhos; filhos, perspectivas, pais e avós. Tudo isso se tivermos a sorte de continuarmos vivos.
Que dádiva se tivermos a possibilidade de seguir esse trajeto com uma companhia que entenda a vida como um caminho e que tenha um passo que seja possível acompanhar sem que a percamos de vista.
Que triste se não.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As paixões e os valores

Não vou entrar no mérito freudiano do que pode significar querer para caralho alguma coisa. Nem por isso me sinto imune às possíveis implicações que isso, ou a falta disso, podem vir a ter na elaboração de um diagnóstico a meu respeito. Mas às vezes faz falta querer alguma coisa para caralho.
Estou simplesmente me apropriando da expressão consagrada para discutir a falta de um querer cego e, ao mesmo tempo, motivador, impulsinador do agir de um indivíduo.
Considero que esse tal querer cego pode ser tanto uma paixão quanto um valor e não descarto que ambos possam se contraditar. Aí começa o problema. As paixões são ambivalentes: malucas e nocivas ou construtivas e deliciosas fazem com que nossos corpos se movam, seja em direção à dor ou ao regozijo. Nunca se sabe. Mas, de alguma forma, há negociação entre nós e elas, temos algum recurso, menor ou maior, para tentar discipliná-las. Talvez sejam um querer mais externo a nós mesmos. Já com os valores é diferente, eles são fundamentais, tragam-nos alegrias ou infortúnios, nos embates do dia-a-dia, deles não nos desviamos sem prestar contas a nós mesmos.
As paixões nos fazem mover, quase sempre, com impeto e agilidade; os valores, quase sempre, com cuidado e parcimônia. Às vezes os valores também nos fazem mover com ímpeto e vice-versa.
A questão é: tanto as paixões quanto os valores podem ser conscientes ou inconscintes. Creio, contudo, que por mais estranho que pareça, tendemos a ser mais conscientes com as paixões do que com os valores que carregamos, ainda que não sejamos muito conscientes quanto as nossas paixões. Ou seja: sobre nossas paixões, ainda somos capazes de alguma malícia, quando somos; com os valores não.
Bem, mas como disse antes, considero as paixões e os valores como duas categorias do "querer para caralho". Creio que a primeira é mais passível de ser reconhecida por nós mesmos, mas, e a segunda, como reconhecer? A primeira tem sempre motivação externa e determinada, mas e a segunda, qual sua motivação e qual sua devoção?
Talvez, ao contrário do que propus, os valores não sejam simples quereres, mas sim quereres profundos sem querer. Seja como for, sentir a falta disso, é um pouco se perder. Dá uma vontde desesperada de se apaixonar pelos próprios valores. Mas para isso é preciso transformá-los em objeto externo, pois só assim seremos capazes de nos apaixonar por eles. Volto então à estaca zero: e se não sei deles?
Estou me interrogando sobre os meus valores, enquanto isso resisto às paixões, delas não conheço sempre os resultados, claro que não, mas sei um pouco mais sobre como operam em mim.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Boa Esperança


Ilustração: Jo Fevereiro

 Entendi! Entendi, esses dias, o que é a esperança. Senti a própria e me senti tabém um pouco ridículo de ter sempre usado a palavra sem saber, mesmo, o que é que ela significava. Agora sei e tento compartilhar.
É mais ou menos assim: eu quero muito que aconteça, mas não sei bem porque... todos os indícios são de que não vai acontecer... eu espero, mas também não sei porque... de repente, começa a acontecer e eu entendo, finalmente, porque é que eu queria e esperava. Fortaleço-me, então.
Todas as metáforas vulgares são corretas: "a última que morre, a luz no final do túnel...". É isso mesmo: parecia que não tinha mais jeito e começa a ter.
Entendi, támbém, que a esperança vale para todos os desacertos circunstanciais: conflitos em relações profissionais; descompassos familiares; frustrações contemporâneas e investimentos afetivos profundos.
Não vale para projetos idiotas; fantasias de infância; fatos concretos do cotidiano e nem para paixões amorosas equivocadas. Pelo menos esses não me parecem objetos da boa esperança, dessa que descobri e tento esclarecer.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Apontamentos não cínicos sobre a mentira


Ilustração: Jo Fevereiro

Quando fui catequizado, ensinaram que um dos dez mandamentos de deus era "não levantar falsos testemunhos", lembro que simplificavam o regulamento dizendo que tratava-se de "não mentir", mentira! Falso testemunho é uma coisa, mentira é outra. Etimologicamente testemunhar tem a ver com comprovar, o prefixo tem a ver também com testículos, como soube recentemente (prova de masculinidade). Não há nos mandamentos nenhuma proibição à mentira, até porque ela seria inócua. Não que as outras não sejam, mas essa seria inócua demais. Não é possível manter-se absolutamente fiel à verdade, seja porque não queremos; porque não conseguimos, ou simplesmente porque não há verdade.
Resolvi registrar aqui algumas ideias sobre a mentira que talvez desenvolva numa próxima vida, nessa provavelmente não terei tempo.
Acho que existem mentiras de tipologias diferentes, algumas inúteis, outras nocivas, outras indiferentes, outras inevitáveis... Poderia classificá-las mais ou menos assim: a) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre mim mesmo; b) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre os outros; c) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre mim e d) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos. Exemplificando respectiva e sumariamente: a) como sou bondoso, não posso ter tido esse pensamento maldoso, então não tive mesmo; b) Como as pessoas são bondosas, essa pessoa não pode ter sido maldosa, então não foi mesmo; c) Como suponho que o outro me tem como bondoso, não posso demonstar que tive esse pensamento maldoso, então não tive mesmo, e d) Como suponho que o outro tem os outros por bondosos, os outros não podem ter sido maldosos, então não foram mesmo.
Desses quatro tipos de mentiras, acredito que o primeiro seja o mais trivial, tão trivial que o próprio sujeito não se reconheceria mentiroso nem sob tortura. O segundo também é parecido, tão comum que se confunde com a própria visão de mundo do sujeito, tratam-se de mentiras coletivas em que o mentiroso nunca está só. O terceiro exige um pouco mais de malícia e costuma trazer mais dividendos instantâneos, com o tempo soi gerar conflitos internos e muito provavelmente, ao final, um balanço negativo sobre a vida que se viveu.
O quarto tipo, de todos, me parece o mais complexo e também aquele sobre o qual não encontro solução na verdade. Ou melhor, a verdade não parece eficaz para contraditá-lo. Lembre-se que refiro-me aqui à "mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos". Nesse caso, enquanto o outro não quer encontrar a saída para o labirinto dos enganos, oferecer-lhe a realidade é estar disposto a ser inconveniente, desprovido de sensibilidade, delirante, insuportável e, obviamente, mentiroso.
São só apontamentos não cínicos sobre o tema.