segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Banco de horas


Já pensou se essa história de banco de horas servisse também para outras coisas mais legais do que o trabalho? Por exemplo: suponha que, a mesma lógica de trabalhar mais hoje para poder não trabalhar algum dia, também valesse para que, ao final da vida e diante da morte, você pudesse descontar tudo que deixou de fazer. Seria assim: deixei 4 anos, oito meses e sete dias de desfrutar a companhia dos amigos; então tenho agora, antes de morrer, direito ao mesmo tempo só para fazer isso. Somando tudo, foram 14 meses e quatro dias sem tempo para brincar com o gato, agora quero esse tempo só para viver com o bichano. Não tive tempo e nem paciência para conviver harmoniozamente com meus pais desde os dezesseis anos; agora terei. Deixei de entender os outros, tentando explicá-los, metadade da minha vida; preciso agora dessa metade de volta. Transei sem muito desfrute setenta por cento das minhas transas, mereço agora gozar intensamente todas as horas desperdiçadas. Deixei de falar, de apreciar, de reconhecer, de rir, de relevar, de admirar e de reconhecer minhas próprias falhas quase toda minha vida, quero então quase toda ela em crédito.
Seria ótimo! Mas esqueça: para a vida não há banco de horas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Dia de sol


Outro dia, conversando com uma amiga sobre política descobri uma coisa. Assim como atuação de juiz de futebol; clima; engenharia de tráfego; determinação de chefias e outras coisas tantas, a política é um tema sobre o qual temos a mania de falar mal. É mania mesmo, está na cabeça e no discurso, mesmo que não esteja na realidade. Ok, talvez não seja uma mania, mais uma convenção que nos obriga a falar mal, ainda que, se pensarmos bem, não estejamos em total desacordo, ou até, concordemos bastante. É mais ou menos assim: o dia está ensolarado, gostamos de sol, mas quando falamos com alguém a respeito, concorda-se que o calor é injusto e insuportável.
No caso da política fica assim: antes não votávamos e era péssimo; passamos a poder escolher os menos ruins e era péssimo; evoluímos para o poder de escolha entre os que gostaríamos e os que não gostaríamos e continuou sendo péssimo; chegamos ao momento em que, dado o avanço das instituições, estamos preservados de erros crassos em nossas escolhas e ainda assim é péssimo.
Como diz minha mulher, escolher hoje um presidente entre Dilma, Serra, Marina e Plínio, não é a mesma coisa que não escolher; não se compara a quase escolher entre Maluf e Tancredo e não é tão definitivo quanto escolher entre Collor e Lula. Por que é, então, que no discurso político das pessoas tudo parece tão igual, ou seja, tão péssimo? Será apenas força da tradição, como com o juiz de futebol, com o chefe e com a sogra?
Talvez exista mesmo, para a maioria, alguma dissociação grave entre o que é, de fato, a política e o que se projeta nela idealmente, seja lá o que se projete. Não preciso mensurar precisamente, mas é inegável que, independente de autorias, as coisas tem melhorado na política brasileira nas últimas décadas: a corrupção aflora com mais facilidade; os maiores escalabros recebem alguma punição; os anseios populares são minimamente levados em conta até pelos mais bisonhos candidatos; os políticos precisam prestar mais contas de suas políticas; ética, decoro e transparência são valores um pouco mais valorados; políticos buscam novos meios para se comunicar com novos públicos; alguns retrocessos são unanimente inadimissíveis.
Como costumam dizer sempre candidatos de situação: "não é suficiente, ainda tem muito que melhorar." Mas é estranho que as melhorias constatáveis não animem as pessoas a encarar e a discursar mais positivamente sobre política. O péssimo de hoje não é tão péssimo quanto o de ontem, logo hoje é um pouco melhor que ontem.
Pode ser que o ideal dessas pessoas esteja ainda muito distante do real, ótimo, caminhemos então para isso conscientes e exultantes a cada passo dado. Mas também pode ser que não haja ideal algum, que seja apenas o vício de falar mal da política e dos políticos. Nesse caso, descupem-me, mas não sinto tanto frio, ontem estava mais gelado e vou à praia assim que esquentar mais.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tragédia de Acertos


Ilustração: Jo Fevereiro

Um dia desses andava pela calçada da Paulista ao lado do MASP quando aconteceu aquilo que sempre acontece: vinha um senhor em minha direção, ou ia eu em direção a ele; pendi para um lado que foi o mesmo lado para o qual ele pendeu, ou vice-versa; pendi, então para o outro, no mesmo instante em que lhe ocorreu a mesma solução para evitar o choque, mas também pode ter sido o contrário; tivemos, por fim, que parar frente a frente. A acareação durou alguns instantes.
De minha parte, toda vez que isso ocorre, tenho a mesma curiosa reação: tenho vontade de rir e penso que acabei de angarear um cúmplice anônimo para nos divertirmos juntos com essa pequena comédia de erros das quais o cotidiano está repleta: todos estavam certos, mas deu errado. Nenhuma consequência grave, apenas a constatação de que ambos erramos, tentando acertar.
Qual o quê! Fui vítima de uma tremenda descompostura! O sujeito olhou-me com ódio e rosnou algo como: "porra, você tem que passar pela direita!". Fiquei chocado. Enquanto ele se desvencilhava para continuar apressado o seu caminho, só consegui perguntar, meio sem graça: "mas que regra é essa?". Ele nem ouviu, seguiu blasfemando.
Continuei o meu caminho até a Augusta. Durante o trajeto fui, um pouco incomodado e triste, pensando e sentindo várias coisas.
Pensei primeiro que talvez ele tivesse razão e que eu não conhecia as normas corretas da caminhada. Já tinha aprendido no metro de Moscou a permanecer à direita na escada rolante se não estivesse com pressa, mas ignorava semelhante código para as calçadas paulistanas. Podia fazer algum sentido, mesmo que eu sequer tivesse entendido exatamente o código violado. Será que eu preciso andar sempre à direita, tanto a pé quanto de carro? Depois pensei que não, que nosso trânsito pedestre ainda não estava tão regulamentado. Que horror se um dia estiver, pensei no Metrópolis do autríaco Fritz Lang. Concluí que se tratava, então, de uma lei pessoal, dessas que se inventa na hora para legitimar uma conduta qualquer.
Esqueci o fato, meu incômodo foi diminuindo na medida em que ia andando e pensando nisso, no quanto inventamos regras que só valem para algumas situações e só para nós mesmos. Pensando no quanto somos meio covardes para encarar a vida quando não há regras, nem justiça e nem injustiça, só a vida mesma com suas fatalidades. No medo que temos de estar errados e na nossa capacidade de inventar o certo para tornar acertadas nossas ações ao nosso próprio olhar.
Cheguei ao meu destino convicto de que assim fica difícil o convívio: se todo mundo está correto em tudo que faz, aquilo que poderia ser uma comédia de erros, ou vira tragédia de acertos, ou vira farsa.
Tenho um amigo que diz que nunca conheceu um sócio pilantra que lesou o outro sócio, só conhece os sócios injustiçados e trapaceados que faliram vitimas do vilipendio do outro sócio. Onde estão os sócios lesivos então? Será que não foi apenas e simplesmente mais um negócio da vida que deu errado?
Será impossível viver sem culpa e sem culpar alguém? Não seria o equívoco, às vezes, como o chover, um verbo sem sujeito? Algo para tão somente contemplar, quem sabe para sorrir e esperar passar, pela direita ou pela esquerda?