domingo, 25 de setembro de 2011

O homem que distribuia flores

Em uma vida passada, estava eu fazendo uma pesquisa, por conta própria, sobre os epitáfios em túmulos de suicidas. Tinha muita curiosidade em saber o que é que ficava registrado. Partia do princípio de que, nesses casos, era maior a chance de que o texto fosse mesmo de autoria do morto. Sempre acreditei que os suicidas eram os verdadeiros estetas da morte, os únicos - além de coveiros, etc - que tratavam do assunto com a objetividade que permite pensar em detalhes fundamentais. Percebi, no fim, que também nesse caso, as coisas são mais complicadas do que parecem. Minha pesquisa durou toda a vida. Vi em Pequim o túmulo de um jovem que matou-se aos 22 anos e, em sua lápide, só havia o número de registro civil e a palavra óbito em chinês com uma data. É certo que ele tinha algo mais à dizer. Em Recife uma senhora, que só se suicidou aos 72 anos, tinha no seu epitáfio: "Mãezinha doce, adoce agora a vida dos anjos". Desconfiei de que não eram delas aquelas palavras. No cemitério da Consolação tinha um mausoléu de uma moça que enforcou-se com 17 anos no final do século XIX. Estava escrito: "... sendo assim, por tudo que não posso nessa vida, posso ao menos pedir a deus que me deixe desfrutar a eternidade entre seus braços". Achei aquilo bem autoral, mas não tive dúvidas de que alguém editou a última carta naquilo que era mais importante. Na vila espanhola de Peñalba encontrei o que me pareceu o epitáfio perfeito de um bom suicida: "me voy sencillamente porque ya no puedo quedarme". Só que Ramirez não se matou, morreu de velho e deixou a frase em um concorrido testamento.
Enfim... por todos esses descaminhos, minha pesquisa ao longo daquela vida foi se tornando infértil. Mesmo assim, não desistia. Mas em Rapallo, na Itália, num pequeno cemitério que visitei todos os dias durante um mês, uma linda história me fez lentamente mudar de foco. E a história meu deu outra vida para continuar pesquisando.
Dia após dia copiando frases no cemitério de Rapallo, notava duas coisas: primeiro, que naquele lugar todas as lápides falavam demais sem dizer muito; segundo, que havia um túmulo sem lápide, na rua B sobre o qual sempre havia uma rosa vermelha que parecia recém colhida e, em torno, um delicioso perfume de flôr que não parecia de cemitério.
A primeira constatação foi me tornando disperso e, a segunda, cada vez mais atento. Quis afinal confessar para alguém aquela impressão inquietante e, quem sabe, obter algum conforto. Acabei conversando com um vigia.
Soube, então, que tratava-se do túmulo do Fiori Nicolla e que, cada rosa que eu vira sobre ele, era mesmo uma rosa recém colhida. Mesmo se passasse por ali de hora em hora, assim seria.
Ninguém na cidade sabe quase nada sobre Fiori Nicolla. Só se sabe que era louco e que passou os últimos 30 anos distribuindo rosas a mulheres e homens, jovens e velhos, capitalistas e socialistas, locais e estrangeiros. O vigia não imagina quantas rosas distribuiu, mas hoje, pelo menos a cada hora, alguém deposita uma nova rosa sobre a sua tumba.
Perguntei como morreu o senhor Nicolla e o que acontece com com as flores velhas. Disse que dizem que um espinho infeccionou em seu polegar e ele não resistiu.
Sobre o que acontece com as flores velhas do túmulo de Fiori Nicolla, o vigia não soube dizer.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Sobre presença e ausência

Tem coisas que são tão óbvias que eu não sei por que é que leva tanto tempo para a ficha cair. A sorte é que, com sorte, um dia ela cai e pode ser da maneira mais inusitada. Numa noite dessas uma linda garçonete conferiu-me esse privilégio tão necessário. Cheguei primeiro e queria uma mesa para três - na verdade achava que seria para dois. Já encostado no balcão, ela pediu meu nome e, muito sincera, me disse que se empenharia em conseguir a mesa. Tive certeza de que, por alguma razão, ia mesmo. Acontece que, depois de algum tempo e algo impaciente, abandonei o meu posto e fui até a porta. Voltei depois ao balcão, já com a minha companhia. O bar estava mais cheio e percebi que a disputa por mesas havia se acirrado. Segurei Fabiana pelo braço na primeira oportunidade e interroguei com o olhar sobre a mesa prometida. Sem que ela retirasse o sorriso profissional, senti que me passou uma descompostura. Disse que minutos antes havia uma mesa, mas que eu não estava mais. Pensou que eu tinha desistido. Senti que deu-me outra chance, mas enquanto isso havia me dado era uma bela porrada. Ficou na minha cabeça o eco de sua voz: "não estava mais... desistido".
A ficha caiu: quando queremos alguma coisa de alguém, temos que nos fazer presentes. Quando não mostramos que estamos, é mais certo os outros não pensarem em nós, ou pensarem que desistimos, mesmo que não tenhamos. Não é óbvio?
Desculpas e justificativas pela nossa ausência podem ter lá os seus encantamentos,  mas é só na nossa presença que a nossa vida relamente acontece. Quem não se fizer presente no que quer viver, não vai viver. É assim, me revelou uma linda garçonete.
Nos sentamos finalmente... e a vida seguiu entre os presentes.

sábado, 3 de setembro de 2011

O caracol e o zangão?!

Numa descontraída e intelectual conversa no jardim, perguntou um caracol para um zangão: o que é longe e o que é perto para você?
Caraca! Sei não - zuniu lentamente o zangão - acho que longe é sempre a abelha... e perto é tudo aquilo do que eu tenho que desviar para chegar até a abelha. E para você? - quis saber o zangão.
Respondeu veloz o caracol: longe é a luz do sol e perto é a sombra de mim mesmo, que sempre me acompanha.
Após um breve silêncio, interrompeu a mariposa: ei, vocês vão se explicar, ou essa conversa vai terminar assim tão filosófica?