quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Tropa de Elite

Como milhares de brasileiros assisti ao filme Tropa de Elite de José Padilha antes de que entrasse em cartaz nos cinemas. Assim como boa parte desses milhares, pretendo vê-lo também em uma insuspeita, porém cada vez mais ruidosa, sala de exibição. Eis então a primeira, e não mais importante, questão suscitada pelo filme: estarão mesmo condenados os direitos autorais pela ação astuta e insidiosa da pirataria associada ao malcaratismo que, em maior ou menor, acomete o corpo social brasileiro?
Esse questionamento tem ocupado tempo e espaço preciosos da mídia nacional nas últimas semanas. Precisamente no caso de Tropa de Elite, não me parece que os prognósticos devam ser tão apocalípticos. Tendo em vista algumas experiências anteriores, em que o sucesso no universo virtual e underground potencializou o sucesso real de uma obra, a ponto de reposicionar os especialistas em marketing e dar origem a conceitos como por exemplo o de marketing viral, acho cada vez mais improvável que essas fenômenos aconteçam expontaneamente e fora do controle do mercado. A julgar pelos efeitos em termos de divulgação, acredito que os produtores do filme têm mais a festejar do que a lamentar com o ocorrido. Se tudo não fez parte de uma cuidadosa estratégia, fica ainda assim aberto o precedente e, certamente outros se servirão do expediente.
Temo, porém, que a polêmica instaurada oblitere outra de maior gravidade e profundidade. Refiro-me ao conteúdo a à mensagem do próprio filme: contra a desordem e a violência, ordem e violência.
Tropa de Elite apresenta ou reafirma a promiscuidade da PM carioca com o narcotráfico, excetuando desse caos o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE); o batalhão é retratado como incorruptível e treinado duramente para o enfrentamento obstinado da guerra com os traficantes. O filme também aborda os vínculos da classe média com o morro, tanto na perspectiva alienado-assistencialista, quanto na de elemento partícipe do ciclo da droga como voraz consumidora.
A trama é tecida de maneira tal que, face à inquestionável volência dos traficantes, à inépcia da polícia convencional e diante da indisposição da classe média para assumir a responsabilidade pelo seu comportamento e postura, só um grupo disposto, preparado e desatado das leis pode trazer a salvação, ainda que seus procedimentos sejam também de inquestionável violência.
Mesmo apontando um dedo para o nariz do jovem universitário usuário de maconha e sentenciando o policial corrupto que trafica armas, o filme não fertiliza a discussão da segurança pública na medida em que apresenta sua solução: o BOPE, forte e intocável. Nesse sentido é bastante loquaz a opção do diretor por uma narrativa cinematográfica clássica com final fechado, assim como também o são a estetização da frieza e a glamurização da corporação.
Sem qualquer alarmismo, é impossível não me remeter às técnicas e concepções de Goebbels sobre o cinema no sistema de propaganda do Terceiro Reich. Justamente por produzir em seu filme uma certa e incômoda intradiegese da classe média, acredito que o diretor conseguirá forte adesão a sua mensagem, lembrando que a insinuação de cumplicidade com um delito pode fazer do indivíduo inseguro um entusiasta da punição ao delinqüente.
Esquadrões da morte não vão solucionar o problema da violência gerada pelo uso e pelo tráfico de drogas. Comecemos a discutir seria e urgentemente a descriminalização do consumo de algumas delas e o vazio existencial dos indivíduos na sociedade em que vivemos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Sobre o Islã - A Afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e as origens do terrorismo

O livro do jornalista Ali Kamel, publicado pela Nova Fronteira, é tão esclarecedor sobre o islamismo quanto polêmico nas teses que defende. Esclarecedor e, mais do que isso, necessário aos dias de hoje, quando se dispõe a mostrar os vínculos profundos entre a religião de Maomé e as de Moisés e Jesus; quando, por exemplo, repavimenta o trajeto que liga o grande profeta do islâmismo à Ismael, filho de Abraão com sua escrava Agar, concebido com a conivência de sua esposa Sara. É esclarecedor também quando trata das disputas entre os seguidores de Maomé após sua morte e do contencioso em relação ao papel de seu primo Ali, que redundaria na eterna batalha entre Sunitas e Xiitas.
Exige suspicácia, porém, o encaminhamento do autor sobre a indiferença entre o Islã e as "Religiões do Livro" quanto à belicosidade dos fiéis por ispiração divina. Se tanto o deus dos cristãos e judeus quanto Alá pregaram, em momentos devidos, o combate sangrento ao inimigo circunstancial, parece que o desenvolvimento das sociedades sob o Judaísmo e sobre o Cristianismo permitiu uma ampliação da laicidade incomparavelmente maior do que a que se verifica nas sociedades muçulmanas. Talvez venha daí a maior dificuldade de contenção da violência inspirada por deus no islamismo: não de seu monopólio da barbárie com justificação divina, porque não há monopólio, mas da maior presença de aspectos religiosos em questões que são do âmbito racional e laico, como a organização social e política e as relações internacionais.
Não se trata de ignorar as diferenças entre os extremistas e os demais religiosos quanto à disposição para o terrorismo, mas, de alguma forma, entendo o extremismo como degeneração da qual qualquer religião original não pode simplesmente se isentar. Atribuir a violência a esse ou aquele grupo de religiosos radicais não resolve o problema e nem deve absolver as religiões que, ao longo da História exacerbaram seu papel institucionalizando-se de si para si.
O livro de Ali Kamel torna-se realmente problemático, quando o autor se aventura na intrépida tarefa de defender a invasão americana do Iraque. Nesse ponto, a partir da página 237 exatamente, o jornalista elenca uma porção de minúsculos e frágeis argumentos para negar o unilateralismo da ação americana, para desculpar o equívoco sincero de George W. Bush quanto às armas de destruição em massa que Sadam não tinha e para justificar a redução das liberdades civis nos EUA, entre outras coisas. Kamel chega a detectar ingratidão por parte dos países europeus que desampararam os EUA na guerra contra o Iraque, sendo que tanto nas duas grandes Guerras quanto na Guerra Fria puderam contar com o apoio americano.
De todo modo Sobre o Islã - afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e as origens do terrorismo é um livro que merece ser lido, mesmo que seja para discordar.

A Interpretação do Assassinato

Atualmente você poderá encontrar nas gôndolas destacadas de qualquer grande livraria o romance A Interpretação do Assassinato, do americano Jef Rubenfeld, lançado pela Cia das Letras. Encontrá-lo em posição privilegiada na livraria, como você deve saber, não é necessariamente mérito do livro, é antes da editora e de seu relacionamento comercial com a livraria, mas tampouco o editor costuma gastar vela com mau defunto. Talvez o livro de Rubenfeld não seja mesmo um mau defunto, afinal traz impressas em sua portada duas informações importantes que funcionam como armas potentes na guerra tribal que é o mercado editorial brasileiro: "800 mil livros vendidos no exterior" e "Crimes misteriosos ameaçam Nova York durante a visita de Freud aos Estados Unidos". Quanto à primeira chamada, não há muito o que dizer; sem referências, sem inquitações conscientes, encurralado entre o pragmatismo e o entretenimento, o grande público leitor rende-se ao velho sistema de agendamento espiralado: muita gente leu, muita gente fala, eu leio, eu falo, mais gente lê, mais gente... nesse sentido, com quase um milhão leitores e ainda estrangeiros, o livro é realmente promissor.
A segunda chamada, porém, é que suscita reflexão mais profunda. Impossível pensar essa publicação sem lembrar do êxito editorial rescente de "Quando Nitzsche Chorou" e "A Cura de Shopenhauer", entre outros. Simples "tendência" do mercado editorial: Breuer, Nitzsche, Freud, Shopenhauer, Jung e Ferenczi, como personagens de romances de fácil leitura? Talvez, embora o termo "tendência", para mim, nunca tenha esclarecido nada, a não ser a constatação do fenômeno e a indisposição para se refletir a respeito. Tenho a impressão de que, na verdade, estamos agora somatizando os traumas sofridos na infância, nos primórdios da nossa relação com as letras e com a ciência. Infelizmente a geração que consome, lê e manda não foi preparada para o desfrute estético que a literatura pode ofertar, nem tampouco foi provocada em sua curiosidade científica sobre o próprio homem e suas possibilidades. Resulta disso uma relação com os livros, quando há, que não é nem estética, nem científica e nem muito funcional, talvez no máximo uma forma respeitada de matar tempo e, quem sabe, possível de ser capitalizada socialmente.
De volta à Interpretação do Assassinato, devo dizer que como defunto, pode ser bom, mas, como livro, é bem ruim. A trama é quase infantil, lembra um pouco os desenhos do Scooby-Doo. O texto não obriga o leitor ao dicionário mais do que duas vezes. Os personagens, com uma ou outra excessão, são feitos de uma casquinha muito fina e os diálogos, que poderiam fazer a diferença, já que, segundo o autor estão baseados em muita pesquisa sobre a real visita de Freud e Jung aos EUA, são didáticos em nível primário. Não é literatura, nem Psicanálise, nem História, mas 800 mil livros já foram vendidos no exterior.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Beslan: infeliz aniversário

Há três anos, em 1 de setembro de 2004 na cidade russa de Beslan, membros da unidade Rijadus-Salichin de rebeldes separatistas da auto-proclamada República Tchetchena tomaram de assalto a Escola N-1 e mantiveram reféns cerca de 1.200 civis. Depois de três dias de cerco, tropas russas invadiram a escola e o saldo foi de 344 mortos incluindo 186 crianças. Com transmissão via satélite, o episódio provocou consternação pelo mundo inteiro. Dentre as principais reivindicações do grupo estava a retirada das tropas russas do território tchetcheno, o que equivalia, na prática, ao reconhecimento definitivo da perda desse território pelo governo de Moscou.
Do ponto de vista tchetcheno tratava-se, na disputa política,de tentar forçar uma negociação com o intransigente governo de Wladimir Putin que castiga a população rebelde com ataques e incursões militares, além de patrocinar assassinatos de lideranças e simpatizantes da causa. Na visão do Kremlin, seguindo a tradição Okrana, KGB e atualmente FSB – de onde é egresso o próprio presidente – tratava-se de não transigir com aqueles terroristas do islamismo radical para não perder as riquezas do território em questão e nem permitir ameaça ao controle da federação russa.
O debate político, porém, deixa de fazer qualquer sentido quando se assiste ao documentário Beslan: three days in September dirigido por Joe Halderman. Ignore-se o absolutamente dispensável tom melodramático expresso em catárticos fundos musicais e numa montagem maliciosa. A história documentada é simplesmente e naturalmente aterrorizante. Provoca aquela vertigem que sentem os incrédulos quando tentam imaginar o tamanho do infinito ou quantificar o vazio da morte.
O documentário traz, além de cenas externas como as que foram exibidas ao vivo pelas tvs na época, a subjetiva de um dos rebeldes, que utilizou a câmera de uma das primeiras vítimas do ataque: um pai que pretendia documentar a festa de retorno às aulas que ocorreria na escola naquele dia; ele foi morto, atirado do segundo andar sobre uma pilha de corpos e, provavelmente, filmado sem vida com a própria câmera. Pode-se então observar um pouco da agonia dos reféns sob o controle dos terroristas e, depois, sob o fogo cruzado durante a invasão das tropas russas. Enquanto familiares entram em convulsão do lado de fora da escola, do lado de dentro homens, mulheres e crianças, sem comida e sem água durante três dias, assistem à detonação, aparentemente voluntária, de duas terroristas que levavam explosivos na cintura e que supostamente não estavam informadas pelo bando que o atentado seria contra a escola. Num dos raros episódios de negociação, um emissário russo consegue a libertação de crianças de colo. Nesse momento algumas mães que possuiam outros filhos dentro da escola tiveram que optar entre sair com o menor ou permanecer com os dois.
Acredito que se nossa espécie fosse capaz de um pouco mais de empatia, o desespero e o sofrimento humano retratados no documentário seriam suficientes para que nunca mais permitíssemos que interesses de qualquer natureza conduzisse seres humanos a tamanha bestialidade. É inútil apurar autoria e culpa, descobrir que tem razão. O que se verifica é que, em casos como esse, todos nós somos vítimas e culpados pois trata-se justamente da falência da racionalidade em si, da renúncia geral à sensibilidade e conseqüentemente de uma vitória contra a humanidade do humano.
Talvez, ao contrário, o humano seja isso mesmo, ou isso também: uma criatura capaz de poemas e sinfonias, mas que tem prazer em ver as víceras do seu semelhante espalhadas pelo campo de batalha por qualquer razão que seja. Ainda assim prefiro pensar nas guerras entre os gregos, que paravam nas olimpíadas e que puniam soldados que cortassem oliveiras durante o conflito.