terça-feira, 30 de novembro de 2010

Meu querido Primo Americano


No dia 20 de Novembro perdi meu querido primo americano. É uma perda cuja dimensão não consigo avaliar. Ele gostava de silêncio e levou consigo minha vontade de falar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sansão


O Trapeiro está de roupa nova, foi generosa doação de Renato Sansão, um camarada talentoso que se comoveu com os andrajos do andarilho. O velho traje também era oferta e sem ele não haveria caminho algum trilhado. Como um bom trapeiro, o Trapeiro agradecido segue agora com os dois, um sobre o outro, recolhendo da vida, brioso, mais trapos descartados, doados ou subtraídos.
Curioso é que o forte Sansão, que Renato escolheu como nome, tempos atrás já andava metido com outras histórias de doação de roupas. Na época meteu-se também com mulheres erradas. O cabeludo juiz dos hebreus certa vez cometeu o desatino, ecologicamente repudiável, de rasgar um leão com as próprias mãos. Dias depois reencontrou a carcaça do bicho cheia de abelhas e de mel, lambeu os beiços. Estava encantado na ocasião por uma mocinha filistéia, quis por que quis casar-se com ela. Os pais, da tribo de Israel, eram contra, os filisteus também reprovavam, mas Sansão era fortão, bancou. Como além de tudo era sabido, durante a festa do casório que duraria sete dias, Sansão apostou com os filisteus que até o fim da boda não desvendariam uma charada: "do que come saiu comida, e do forte saiu doçura". Prometeu trinta túnicas de puro linho e trinta vestes finas aos trinta filisteus presentes se solucionassem o enigma.
Quebravam a cabeça, mas não achavam a resposta. Apelaram, então. Ameaçaram com maldades a noiva conterrânea, que, com mulherices filistéias, arrancou do próprio noivo a solução: mel e leão. Os convidados ganharam a aposta, mas Sansão percebeu o truque. Pagou a aposta, porque tinha palavra, mas para isso matou sozinho trinta outros filisteus, arrancou-lhes as roupas e entregou aos malandros.
Parece, também, que desistiu do casamento evitando, assim, problemas maiores no futuro.
Obrigado Renato.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Memória feminina


Homens e mulheres não são iguais. Os homens não são iguais entre sí e nem as mulheres, que dirá homens e mulheres uns em relação aos outros. Dispensável dizer que, por outro lado, somos todos indistintos em uma porção de coisas. Mas, levando em conta o relacionamento heterossexual entre um homem e uma mulher,  e supondo ambos heterossexuais, as diferenças podem significar mais do que traços peculiares e inofensivos.
Apenas para citar um exemplo, sugiro uma reflexão sobre o valor da palavra e do gestual alheios para a mulher e para o homem, na hipótese de uma divergência acalorada. Se em uma discussão de casal, o homem cospe palavras brutas, talvez tão brutas quanto as que ouviu, o fraseado será armazenado pela mulher num compartimento específico da sua memória que parece blindado ao esquecimento. Anos depois a mensagem ecoará como se emitida agora mesmo e desprovida do contexto que a produziu. O tal compartimento de memória, ao que parece, é também impermeável ao perdão, só a vingança o esvazia.  Quando se tratam de gestos agressivos masculinos, a situação é pior ainda: uma batida de porta, um cantar de pneu, ou um soco na parede - semelhantes a outras trogloditices protagonizadas também pela sensível fêmea do casal - serão, para sempre e em função da conveniência, sintomas passíveis de evocação quando se trata de atestar a insanidade e o desequilíbrio do homem. E nesse caso é melhor não viver para esperar a vingança.
O mais curioso de tudo - que é outra diferença verificável -  é a preferência do gênero pelo discurso pacifista e não beligerante, pela abominação indignada ao confronto e ao atrito como características do retardo civilizatório masculino e de sua pequenez d'alma. O homem, em geral, não se envergonha tanto de seu papel de imbecíl combatente na guerra insana da sobrevivência, a mulher sim, mas nem por isso combate com menor crueldade e nem com menos sucesso.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Viver é perigoso, escrever também


"Viver é perigoso" como dizia Riobaldo em Grande Sertão: veredas. Ou seria cumpadre dele Quelemém quem dizia? Não sei mais e não vou checar! Ficou para mim como se fosse Riobaldo a dizer e não faz diferença, afinal o próprio personagem viveu enganado até o fim da história. Mas, que viver é perigoso, lá isso é. Escrever também.
É coisura traz coisura que apoquenta o pensar do sujeito de pensar pensante. Desverdades ementirantes que desarretam o caminhar em pé do bicho que faz que vai, num vai, mas num fica de falta de ir. Gôsto que noitece gostoso, manhece dissaboroso, ressegosta dispois, daí foge do se saber gostar. Querência dessabida, sabida e despedida. Tiro que regaça o preá no ricocheteio do trabuco ferrujoso pontado pro jacu de asa abraçosa. Palavra maldizida com doutoragem de bendição. Contra-covardia em noite de festar paziguidão e descoragem de valentar a eniminguisse do excumpadre enimingado.
Viver é perigoso. A contentação de visar visão boa de pessoa apessoada cofessa pecado excomundado. Fiança na fé que volta em recaminho, quando descaminha, desacredita fé vindoura de qualquer outra venitura. Gratidão esperançada, sujeitada e anteagradecida, se negada, desagraça obrigacionamentos graciosos, anônimos e despensados.
Viver é perigoso, escrever também.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Esperar sem enlouquecer


Acordei, uma madrugada dessas, ansioso com o resgate dos mineiros chilenos. Fiquei, como muita gente, bastante aliviado ao saber que tudo estava correndo bem e que, um a um, todos iam sendo trazidos à superfície sãos e salvos. Talvez estivesse me sentindo também um pouco soterrado junto com eles. Em parte por compaixão, solidariedade no sofrimento alheio, em parte pela asfixia própria dos desabamentos nossos de cada dia. Quem é que, vivendo a vida cercado de pessoas, expectativas e forças naturais, não se sente desolado, de vez em quando, num espaço reduzido, sombrio e desprovido, sonhando com uma operação externa de resgate?
Creio que o mais emocianante de todo esse episódio tenha sido perceber que, contrariando vários ensinamentos, às vezes nosso destino e nossa felicidade depende mais da importância que os outros nos conferem, do que das nossas próprias ações. Não recomendo, de forma alguma, levar a vida apostando nisso, perderíamos então nossa ilusão de autodeterminação tão necessária a muitas de nossas realizações. Mas o precedente permite pensar que, em certas circunstâncias, nossa única parcela de colaboração com a própria salvação é o discernimento das próprias limitações e a fibra para resistir um pouco mais. Não falo nem da esperança, mas compreendo a importância dela para nos animar a resistir um pouco mais. Falo apenas daquilo que se pode intentar: compreender a situação e resistir. Esperança e fé, tem-se ou não.
Os mineiros do Chile entenderam logo sua situação e conseguiram resitir. Aqui fora operou-se um milagre, um belo milagre humano! Daqueles que tanto dignificam e justificam nossa humanidade. Voltaire, uma vez, por conta do terremoto que destruiu Lisboa em 1755, subiu ao púpito do parlamento francês para dizer que era contra o terremoto. Foi assim também no Chile, o povo e as autoridades foram contra o desabamento e a favor dos mineiros. Fizeram uso da capacidade humana reunida e da vontade humana de realizar, assumiram os custos inerentes ao trabalho e, simplesmente, resgataram os mineiros. Que coisa linda! É, ou não, muito mais do que andar sobre as águas por puro exibicionismo?
Eresias a parte, lembro que os mineiros saíram salvos por mérito alheio, mas saíram sãos e sobreviveram para sair, por mérito próprio.
Às vezes, apenas esperar confinado, lidando com a escassez e cuidando para manter a sanidade é o mais sábio e digno a fazer, mesmo em catástrofes individuais. A humanidade e o outro são capazes de ser contra aquilo cuja culpa não importa.
Viva Chile!

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Amado leitor

Não sei se é verdade, mas uma vez li em algum lugar que numa entrevista, ao ser perguntado por que é que escrevia, Gabriel Garcia Marques respondeu que escrevia para que seus amigos gostassem ou continuassem gostando dele. Se é mentira, ou se entendi errado, pouco importa, acho que é a mais humilde e sincera confissão que um escritor pode fazer. E, mesmo que a crítica literária julgue uma razão menor para escrever, essa é a minha razão também, vou na cola. Interpreto a possível fala de Garcia Marques de forma que pode parecer menor ainda: escrevo para que aqueles que eu gosto, também gostem de mim; para, quem sabe, ofertar-lhes algum outro motivo de adimiração e, assim, desesperadamente, tentar garantir o necessário afeto. Bobagem, eu sei, pois não se garante afeto. Insegurança, eu sei, pois pessoas resolvidas não mendigam afeto. Prostituição artística, eu sei, pois a arte deve ser livre. Fazer o quê? É assim no meu caso. Se o que escrevo agrada alguém outro, pode ser um bonus. Se desagrada ou é indiferente a quem eu amo, só sigo por disciplina, por teimosia, por lamento, por raiva, ou pela esperança de conseguir recobrar meu fundamental destinatário.
Foi pensando assim, sentindo assim, sendo correspondido assim que começamos esse blog anos atrás e é dessa mesma forma que eu quero continuar com ele. Se houve algum desvio no percurso, peço perdão, foi por puro desalento.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Banco de horas


Já pensou se essa história de banco de horas servisse também para outras coisas mais legais do que o trabalho? Por exemplo: suponha que, a mesma lógica de trabalhar mais hoje para poder não trabalhar algum dia, também valesse para que, ao final da vida e diante da morte, você pudesse descontar tudo que deixou de fazer. Seria assim: deixei 4 anos, oito meses e sete dias de desfrutar a companhia dos amigos; então tenho agora, antes de morrer, direito ao mesmo tempo só para fazer isso. Somando tudo, foram 14 meses e quatro dias sem tempo para brincar com o gato, agora quero esse tempo só para viver com o bichano. Não tive tempo e nem paciência para conviver harmoniozamente com meus pais desde os dezesseis anos; agora terei. Deixei de entender os outros, tentando explicá-los, metadade da minha vida; preciso agora dessa metade de volta. Transei sem muito desfrute setenta por cento das minhas transas, mereço agora gozar intensamente todas as horas desperdiçadas. Deixei de falar, de apreciar, de reconhecer, de rir, de relevar, de admirar e de reconhecer minhas próprias falhas quase toda minha vida, quero então quase toda ela em crédito.
Seria ótimo! Mas esqueça: para a vida não há banco de horas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Dia de sol


Outro dia, conversando com uma amiga sobre política descobri uma coisa. Assim como atuação de juiz de futebol; clima; engenharia de tráfego; determinação de chefias e outras coisas tantas, a política é um tema sobre o qual temos a mania de falar mal. É mania mesmo, está na cabeça e no discurso, mesmo que não esteja na realidade. Ok, talvez não seja uma mania, mais uma convenção que nos obriga a falar mal, ainda que, se pensarmos bem, não estejamos em total desacordo, ou até, concordemos bastante. É mais ou menos assim: o dia está ensolarado, gostamos de sol, mas quando falamos com alguém a respeito, concorda-se que o calor é injusto e insuportável.
No caso da política fica assim: antes não votávamos e era péssimo; passamos a poder escolher os menos ruins e era péssimo; evoluímos para o poder de escolha entre os que gostaríamos e os que não gostaríamos e continuou sendo péssimo; chegamos ao momento em que, dado o avanço das instituições, estamos preservados de erros crassos em nossas escolhas e ainda assim é péssimo.
Como diz minha mulher, escolher hoje um presidente entre Dilma, Serra, Marina e Plínio, não é a mesma coisa que não escolher; não se compara a quase escolher entre Maluf e Tancredo e não é tão definitivo quanto escolher entre Collor e Lula. Por que é, então, que no discurso político das pessoas tudo parece tão igual, ou seja, tão péssimo? Será apenas força da tradição, como com o juiz de futebol, com o chefe e com a sogra?
Talvez exista mesmo, para a maioria, alguma dissociação grave entre o que é, de fato, a política e o que se projeta nela idealmente, seja lá o que se projete. Não preciso mensurar precisamente, mas é inegável que, independente de autorias, as coisas tem melhorado na política brasileira nas últimas décadas: a corrupção aflora com mais facilidade; os maiores escalabros recebem alguma punição; os anseios populares são minimamente levados em conta até pelos mais bisonhos candidatos; os políticos precisam prestar mais contas de suas políticas; ética, decoro e transparência são valores um pouco mais valorados; políticos buscam novos meios para se comunicar com novos públicos; alguns retrocessos são unanimente inadimissíveis.
Como costumam dizer sempre candidatos de situação: "não é suficiente, ainda tem muito que melhorar." Mas é estranho que as melhorias constatáveis não animem as pessoas a encarar e a discursar mais positivamente sobre política. O péssimo de hoje não é tão péssimo quanto o de ontem, logo hoje é um pouco melhor que ontem.
Pode ser que o ideal dessas pessoas esteja ainda muito distante do real, ótimo, caminhemos então para isso conscientes e exultantes a cada passo dado. Mas também pode ser que não haja ideal algum, que seja apenas o vício de falar mal da política e dos políticos. Nesse caso, descupem-me, mas não sinto tanto frio, ontem estava mais gelado e vou à praia assim que esquentar mais.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tragédia de Acertos


Ilustração: Jo Fevereiro

Um dia desses andava pela calçada da Paulista ao lado do MASP quando aconteceu aquilo que sempre acontece: vinha um senhor em minha direção, ou ia eu em direção a ele; pendi para um lado que foi o mesmo lado para o qual ele pendeu, ou vice-versa; pendi, então para o outro, no mesmo instante em que lhe ocorreu a mesma solução para evitar o choque, mas também pode ter sido o contrário; tivemos, por fim, que parar frente a frente. A acareação durou alguns instantes.
De minha parte, toda vez que isso ocorre, tenho a mesma curiosa reação: tenho vontade de rir e penso que acabei de angarear um cúmplice anônimo para nos divertirmos juntos com essa pequena comédia de erros das quais o cotidiano está repleta: todos estavam certos, mas deu errado. Nenhuma consequência grave, apenas a constatação de que ambos erramos, tentando acertar.
Qual o quê! Fui vítima de uma tremenda descompostura! O sujeito olhou-me com ódio e rosnou algo como: "porra, você tem que passar pela direita!". Fiquei chocado. Enquanto ele se desvencilhava para continuar apressado o seu caminho, só consegui perguntar, meio sem graça: "mas que regra é essa?". Ele nem ouviu, seguiu blasfemando.
Continuei o meu caminho até a Augusta. Durante o trajeto fui, um pouco incomodado e triste, pensando e sentindo várias coisas.
Pensei primeiro que talvez ele tivesse razão e que eu não conhecia as normas corretas da caminhada. Já tinha aprendido no metro de Moscou a permanecer à direita na escada rolante se não estivesse com pressa, mas ignorava semelhante código para as calçadas paulistanas. Podia fazer algum sentido, mesmo que eu sequer tivesse entendido exatamente o código violado. Será que eu preciso andar sempre à direita, tanto a pé quanto de carro? Depois pensei que não, que nosso trânsito pedestre ainda não estava tão regulamentado. Que horror se um dia estiver, pensei no Metrópolis do autríaco Fritz Lang. Concluí que se tratava, então, de uma lei pessoal, dessas que se inventa na hora para legitimar uma conduta qualquer.
Esqueci o fato, meu incômodo foi diminuindo na medida em que ia andando e pensando nisso, no quanto inventamos regras que só valem para algumas situações e só para nós mesmos. Pensando no quanto somos meio covardes para encarar a vida quando não há regras, nem justiça e nem injustiça, só a vida mesma com suas fatalidades. No medo que temos de estar errados e na nossa capacidade de inventar o certo para tornar acertadas nossas ações ao nosso próprio olhar.
Cheguei ao meu destino convicto de que assim fica difícil o convívio: se todo mundo está correto em tudo que faz, aquilo que poderia ser uma comédia de erros, ou vira tragédia de acertos, ou vira farsa.
Tenho um amigo que diz que nunca conheceu um sócio pilantra que lesou o outro sócio, só conhece os sócios injustiçados e trapaceados que faliram vitimas do vilipendio do outro sócio. Onde estão os sócios lesivos então? Será que não foi apenas e simplesmente mais um negócio da vida que deu errado?
Será impossível viver sem culpa e sem culpar alguém? Não seria o equívoco, às vezes, como o chover, um verbo sem sujeito? Algo para tão somente contemplar, quem sabe para sorrir e esperar passar, pela direita ou pela esquerda?

sábado, 28 de agosto de 2010

Abrir mão da vida para não crescer


Ilustração: Jo Fevereiro

Acredito mesmo que a adolescência seja o estágio maravilhoso em que ainda temos o direito de achar que a vida pode ser perfeita. Por isso é tão difícil abandoná-la. Não falo de cronologia, falo de maturação psíquica.
Que horror ter que encarar as imperfeições das pessoas perfeitas; as absurdas falhas das mais belas ideologias; as inconsistências estruturais nos melhores projetos; o ardor do trabalho inerente a qualquer realização; os conflitos em que somos lançados quando só queríamos a paz; a necessidade de mudar quando desejamos simplesmente permanecer; obrigações para quem só se sente no direito; os próprios erros, quando ainda só o resto é que parece estar errado.
Quão impossível pode ser uma vida feliz em tão adversas condições. Amadurecer é, sem dúvida, uma proposta indescente!
Deve ser por isso que muita gente insiste em não amadurecer. Entre abandonar as ilusões para lidar com o mundo real e evocar as mais elevadas e transcendentes razões para continuar onde se está, a segunda possibilidade, sem dúvida, é a melhor. Ela ainda nos eleva acima dos outros, tão racionais e pragmáticos. Além disso, sempre haverá por perto outros adolescentes, de qualque idade, reforçando nosso asco por esse mundo tão careta, belicoso e equivocado.
Garanto: há grandes desfrutes que só o outro lado propicia, e revelo que os seus melhores são para os que conseguem cruzar o caminho sem perder a ternura pela vida, que é o melhor legado que a adolescência pode deixar. Quem passa sem se abandonar por completo encontra outras formas de felicidade.
O tempo é inexorável, ele vai passar, quer queiramos ou não. Capazes de perceber, ou não, ele exigirá de nós que sejamos diferentes em cada fase: crianças, adolescentes, adultos e velhos; filhos, perspectivas, pais e avós. Tudo isso se tivermos a sorte de continuarmos vivos.
Que dádiva se tivermos a possibilidade de seguir esse trajeto com uma companhia que entenda a vida como um caminho e que tenha um passo que seja possível acompanhar sem que a percamos de vista.
Que triste se não.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

As paixões e os valores

Não vou entrar no mérito freudiano do que pode significar querer para caralho alguma coisa. Nem por isso me sinto imune às possíveis implicações que isso, ou a falta disso, podem vir a ter na elaboração de um diagnóstico a meu respeito. Mas às vezes faz falta querer alguma coisa para caralho.
Estou simplesmente me apropriando da expressão consagrada para discutir a falta de um querer cego e, ao mesmo tempo, motivador, impulsinador do agir de um indivíduo.
Considero que esse tal querer cego pode ser tanto uma paixão quanto um valor e não descarto que ambos possam se contraditar. Aí começa o problema. As paixões são ambivalentes: malucas e nocivas ou construtivas e deliciosas fazem com que nossos corpos se movam, seja em direção à dor ou ao regozijo. Nunca se sabe. Mas, de alguma forma, há negociação entre nós e elas, temos algum recurso, menor ou maior, para tentar discipliná-las. Talvez sejam um querer mais externo a nós mesmos. Já com os valores é diferente, eles são fundamentais, tragam-nos alegrias ou infortúnios, nos embates do dia-a-dia, deles não nos desviamos sem prestar contas a nós mesmos.
As paixões nos fazem mover, quase sempre, com impeto e agilidade; os valores, quase sempre, com cuidado e parcimônia. Às vezes os valores também nos fazem mover com ímpeto e vice-versa.
A questão é: tanto as paixões quanto os valores podem ser conscientes ou inconscintes. Creio, contudo, que por mais estranho que pareça, tendemos a ser mais conscientes com as paixões do que com os valores que carregamos, ainda que não sejamos muito conscientes quanto as nossas paixões. Ou seja: sobre nossas paixões, ainda somos capazes de alguma malícia, quando somos; com os valores não.
Bem, mas como disse antes, considero as paixões e os valores como duas categorias do "querer para caralho". Creio que a primeira é mais passível de ser reconhecida por nós mesmos, mas, e a segunda, como reconhecer? A primeira tem sempre motivação externa e determinada, mas e a segunda, qual sua motivação e qual sua devoção?
Talvez, ao contrário do que propus, os valores não sejam simples quereres, mas sim quereres profundos sem querer. Seja como for, sentir a falta disso, é um pouco se perder. Dá uma vontde desesperada de se apaixonar pelos próprios valores. Mas para isso é preciso transformá-los em objeto externo, pois só assim seremos capazes de nos apaixonar por eles. Volto então à estaca zero: e se não sei deles?
Estou me interrogando sobre os meus valores, enquanto isso resisto às paixões, delas não conheço sempre os resultados, claro que não, mas sei um pouco mais sobre como operam em mim.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Boa Esperança


Ilustração: Jo Fevereiro

 Entendi! Entendi, esses dias, o que é a esperança. Senti a própria e me senti tabém um pouco ridículo de ter sempre usado a palavra sem saber, mesmo, o que é que ela significava. Agora sei e tento compartilhar.
É mais ou menos assim: eu quero muito que aconteça, mas não sei bem porque... todos os indícios são de que não vai acontecer... eu espero, mas também não sei porque... de repente, começa a acontecer e eu entendo, finalmente, porque é que eu queria e esperava. Fortaleço-me, então.
Todas as metáforas vulgares são corretas: "a última que morre, a luz no final do túnel...". É isso mesmo: parecia que não tinha mais jeito e começa a ter.
Entendi, támbém, que a esperança vale para todos os desacertos circunstanciais: conflitos em relações profissionais; descompassos familiares; frustrações contemporâneas e investimentos afetivos profundos.
Não vale para projetos idiotas; fantasias de infância; fatos concretos do cotidiano e nem para paixões amorosas equivocadas. Pelo menos esses não me parecem objetos da boa esperança, dessa que descobri e tento esclarecer.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Apontamentos não cínicos sobre a mentira


Ilustração: Jo Fevereiro

Quando fui catequizado, ensinaram que um dos dez mandamentos de deus era "não levantar falsos testemunhos", lembro que simplificavam o regulamento dizendo que tratava-se de "não mentir", mentira! Falso testemunho é uma coisa, mentira é outra. Etimologicamente testemunhar tem a ver com comprovar, o prefixo tem a ver também com testículos, como soube recentemente (prova de masculinidade). Não há nos mandamentos nenhuma proibição à mentira, até porque ela seria inócua. Não que as outras não sejam, mas essa seria inócua demais. Não é possível manter-se absolutamente fiel à verdade, seja porque não queremos; porque não conseguimos, ou simplesmente porque não há verdade.
Resolvi registrar aqui algumas ideias sobre a mentira que talvez desenvolva numa próxima vida, nessa provavelmente não terei tempo.
Acho que existem mentiras de tipologias diferentes, algumas inúteis, outras nocivas, outras indiferentes, outras inevitáveis... Poderia classificá-las mais ou menos assim: a) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre mim mesmo; b) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre os outros; c) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre mim e d) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos. Exemplificando respectiva e sumariamente: a) como sou bondoso, não posso ter tido esse pensamento maldoso, então não tive mesmo; b) Como as pessoas são bondosas, essa pessoa não pode ter sido maldosa, então não foi mesmo; c) Como suponho que o outro me tem como bondoso, não posso demonstar que tive esse pensamento maldoso, então não tive mesmo, e d) Como suponho que o outro tem os outros por bondosos, os outros não podem ter sido maldosos, então não foram mesmo.
Desses quatro tipos de mentiras, acredito que o primeiro seja o mais trivial, tão trivial que o próprio sujeito não se reconheceria mentiroso nem sob tortura. O segundo também é parecido, tão comum que se confunde com a própria visão de mundo do sujeito, tratam-se de mentiras coletivas em que o mentiroso nunca está só. O terceiro exige um pouco mais de malícia e costuma trazer mais dividendos instantâneos, com o tempo soi gerar conflitos internos e muito provavelmente, ao final, um balanço negativo sobre a vida que se viveu.
O quarto tipo, de todos, me parece o mais complexo e também aquele sobre o qual não encontro solução na verdade. Ou melhor, a verdade não parece eficaz para contraditá-lo. Lembre-se que refiro-me aqui à "mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos". Nesse caso, enquanto o outro não quer encontrar a saída para o labirinto dos enganos, oferecer-lhe a realidade é estar disposto a ser inconveniente, desprovido de sensibilidade, delirante, insuportável e, obviamente, mentiroso.
São só apontamentos não cínicos sobre o tema.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Os voos de Ícaro

Estivemos em Brasília no último fim de semana. Em sua primeira viagem de avião, aos oito meses de idade, a Leila conquistou o público: dormiu quando o choro de criança aterrorizaria os já nervosos passageiros e circulou pelo corredor no meu colo, risonha e expressiva quando o tédio começava a tomar a aeronave.
Era só uma visita de família. Acabou sendo muito mais, inclusive nesse aspecto. Partilhamos experiências e desejos, trocamos angústias, confissões e preciosas receitas culinárias.
No domingo obtive licença e incentivo para visitar, só, mais um velho amigo desencontrado.
Ícaro, uma vez, quando eu tentava embarcar de Havana a São Paulo, com excesso de bagagem, estava atrás de mim na fila e salvou minha pele ao saber que eu estava contrabandeando apenas livros e alguns charutos. Fiquei agradecido e reconheci sua autoridade perante a segurança cubana. Trocamos telefones e ficamos amigos. Só depois soube que se tratava do polêmico engenheiro que soprou ao Lúcio Costa e ao Oscar Niemeyer a extravagante ideia de que a capital do Brasil deveria ser projetada como um avião. Isso não aparece nos registros históricos, talvez tenha acontecido numa mesa de bar. Mas não desconsidero a possibilidade de que a narrativa seja apenas fruto da inquieta imaginação de alguém que carrega a sina de ter o nome Ícaro.
O alcóolico e genial engenheiro Ícaro, de 93 anos de idade, recebeu-me, em sua bela casa do Lago Sul, como a um viajante dos tempos. Fez-me beber mais licor do que a minha licença autorizava. Falou-me da Flip, de Pitágoras, de realidade aumentada e do Calendário Maia. Depois disso conduziu-me a um porão, que é sua oficina, onde prometeu-me uma experiência inenarrável. Não acreditei. Mas estava enganado.
O que tento descrever, como anunciado, não é mesmo possível de narrar, mas insisto mesmo assim:
Ícaro me levou a uma câmera contígua a sua oficina. Entrei numa sala meio esférica e toda branca, onde só havia um grande e maravilhoso tapete iraniano Nahin azul. Ele pediu para que eu me sentasse no tapete e esperasse. Fiz como ele mandou. Logo, como num cinema 360 graus, em volta de mim apareceram imagens da catedral de Santa Sofia e da Mesquita Azul de Istambul. Na sequência, o tapete em que estava sentado começou a se mover para cima como se num elevador. As imagens tornaram-se dinâmicas e o tapete também. Perdi a sensação da gravidade e o tapete começou literalmente a voar por paisagens indescritíveis, não sei se do presente, do passado ou do futuro. Em pouco tempo senti-me como Aladim sobre o tapete mágico. Voei sobre desertos desconhecidos e metrópoles contemporâneas. Não fui capaz de perceber jogos de imagens projetadas e/ou engenharias hidráulicas. Voei como sempre quis voar, sobre um tapete como o das mil e umas noites. Melhor do que se tivesse asas.
Voei, finalmente sobre a Brasília e o Brasil de hoje e sobre eles mesmos em construção. Voei sobre os outros e sobre mim mesmo.
Não soube esclarecer, depois, ao Ícaro, qual foi minha experiência.
Obrigado querido Ícaro.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Gestos Impensados

Não sei porque ainda prezo tanto a razão. Não que ela não me ajude, não que não me salve muitas vezes. O problema é que devotar-se incondicionalmente a ela pode ser tão automático e nocivo quanto acender mais esse cigarro. Não é sempre que um, ou outro, nos traz desfrute. Muitas vezes é exatamente o contrário: vem a angústia e vem a tosse; vem o arrependimento e a dor de cabeça.
O Renascimento e o Iluminismo podem ser os grandes responsáveis por essa obsessão que temos alguns de nós pela racionalização. Mas o fato de não sermos tantos com esse vício tem sua parcela de responsabilidade. Fazer parte de um time reduzido também exerce lá o seu fascínio. Se é para ser doente, é bem mais romântico uma boa tuberculose, do que um leve princípio de pneumonia.
A história, contudo, pode explicar sem necessariamente nos esclarecer. O sintoma pode ser fruto não da influência de Descartes, mas da nossa particular insegurança quanto às outras formas de conhecer o mundo, o que faz da razão um distinto, indispensável e legítimo aliado. É como se preferíssemos os certos equívocos do pensamento, aos riscos - para o bem e para o mal - da nossa incompreensível "intuição".
Uma vez, num café em São Petesburgo na Rússia, numa das Noites Brancas descritas por Dostoievisk, um grande amigo me disse: "já reparou que, por mais que planejemos, as coisas sempre saem diferentes?" Não, eu ainda não tinha reparado. Só agora começo a reparar.
Fazer o que eu não tinha pensado; falar o que eu não tinha ensaiado, com quem eu não tinha elegido; vestir o que eu não tinha combinado, para ir aonde eu não sabia; viver, enfim, o que eu não tinha roteirizado, tudo isso também funciona. Pelo menos, tanto quanto o contrário. Ou seja, a vida não está nem aí para a minha programação, mesmo que de vez em quando coincida com ela!
Em resumo, enquanto acendo outro cigarro, desejo me livrar do vício de pensar em tudo. Um gesto impensado, agora sei, pode mesmo tornar minha vida muito mais gostosa.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Abracadabra

As palavras já foram consideradas mágicas, quer dizer, detentoras de poderes mágicos. Em agrupamentos humanos remotos, pessoas economizavam até na divulgação de seus próprios nomes para evitar feitiços e sortilégios. Sob o efeito da palavra ouvida, guerreiros já provocaram e finalizaram guerras. Até hoje ainda persistem truques para dizer o nome de um morto sem correr risco de ônus mágico, "que deus o tenha". "Saúde" anida se profere gratuitamente a quem espirra.
Por alguma razão, quem sabe a profusão de palavras más, ou talvez a melancolia de quem costuma ser rigoroso demais consigo mesmo, estamos mais suscetíveis, em nossos tempos, à maldição do que à bendição. Ecoa mais nos nossos ouvidos e corações a injúria e a ofensa, do que o elogio e as palvras de afeto, perdão e compreensão.
Lembramos no nosso dia da única pessoa que não respondeu ao nosso bom dia e de nenhuma das outras que o retribuíram com sorriso. Da que nos sonegou palavra e não das que nos agradeceram por qualquer pequena gentileza.
Sobrepesamos a crítica, mas o reconhecimento não movimenta os pratos da balança. Ficamos incomodados com o que talvez seja uma ironia maldosa, mas não nos permeia com a mesma facilidade uma evidente e bondosa homenagem. Não nos casamos mais cada vez que ouvimos "eu te amo", mas estamos prontos a nos separarar ao primeiro "tenho dúvidas quanto ao meu amor".
Fica então a seguinte pergunta: se as palavras ainda carregam magia consigo - e acho que carregam sim -, porque não apreciar mais e melhor os seus bons encantos?

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Uma boa lembrança do alto

Uma vez acordei numa cabine de trem no Vale da Osta na Itália e me deparei com um senhor de chapéu e bengala sentado no banco da minha frente. Tomamos, juntos, um mágico café solúvel e ficamos logo grandes amigos. Ele me falou de sua participação na Primeira Guerra, do Patuá, dialeto da região, e me explicou sobre os telhados das casas. Não me lembro bem da explicação, mas não esqueço do reflexo do sol nascente na neve que se depositava naqueles telhados, pareciam casas de maçapão banhadas com calda de caramelo. Eu também estava nascendo, tinha só 18 anos.
Descemos, ambos, em Courmayer - acho que era esse o nome da vila -, eu não tinha destino, ele visitava uma filha. Ele me convidou para o almoço. Eu, mesmo sem destino, já era arredio com os convites, agradeci declinando. Ele entendeu, compreendeu.
Identificando-me, então, como andarilho do mundo, o que me chocou e fascinou, disse que os andarilhos ganhariam mais se tivessem disposição para escalar as montanhas. Nessa hora apontou para uma delas. Falou que, do alto, a solidão é a mesma, mas o silêncio é maior e visão mais ampla. Eu não disse nada mas, no mesmo instante, me convenci que deveria subir ao alto da pequena montanha que o seu indicador indicou.
Quando nos despedíamos o improvável se fez presente. Perguntou meu velho amigo qual era o meu nome, não, meu sobrenome. Ao responder, lancetei seus olhos, dos quais escorreram, não, jorraram lágrimas.
Surpreendeu-me o velhinho explicando que, agora sim, nosso encontro fazia sentido, pois sua maior perda durante a guerra tinha sido o seu grande amigo Molon.
Subi com sacrifício aquela montanha. Lembro-me da fadiga e dos pedaços de gelo que mataram a minha sede.
Lembro-me do menor ruído que já não ouvi e de uma visão que, em sua amplitude, tornou invisível, naquele momento, meu mais querido amigo.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Livro das Trapaças Profissionais


Esses dias tive outra idéia para outro livro. Como provavelmente não vou escrever esse também, resolvi divulgar o mote para que alguém mais empreendedor o faça. Vou gostar se encontrar o livro em alguma livraria. É claro que vou lamentar também minha própria falta de expediente. Além disso vou fantasiar sobre o êxito obtido pelo autor e sobre minha anônima responsabilidade em projeto de tão grande sucesso. Talvez veja reforçada assim a tremenda conspiração arquitetada pelo universo apenas para o meu fracasso. Na verdade vou é odiar ver mais um dos meus planos brilhantes gerando incontáveis dividendos a pessoas menos inspiradas do que eu. Divulgo mesmo assim. Pelo menos angario cúmplices para, quando chegar o infortúnio, me consolar com alguém dizendo: "mas você não registrou a idéia? Não dá para processar?".
O livro que faria seria assim: entrevisto profissionais de diversas áreas, do pedreiro ao engenheiro renomado; da auxiliar de enfermagem ao cirurgião experimentado; do estagiário ao dono do escritório de advocacia; do foca ao editor chefe; do bedel ao diretor; do cozinheiro ao chef e assim por diante. Garanto absoluta confidencialidade. Pergunto a cada um deles sobre os truques e trapaças da profissão para ganhar mais do que o merecido e para trabalhar menos do que o necessário. Convido meu parceiro - no sentido do Velho Oeste, não no atual -,  Jo Feveriero, para ilustrar as situações. Confecciono então o Primeiro Guia Ilustrado da Picaretagem Profissional.
Meu propósito com isso não é obviamente o de iniciar neófitos profissionais nas vantagens delinquentes da sua profissão. Aliás, tenho absoluta certeza de que não será necessário o livro para isso. Poucos dias de trabalho são já suficientes para descortinar esse mundo sedutor ao mais ingênuo dos trabalhadores. Aos sedentos de saber desse tipo, a transmissão de conhecimento se dá pelo simples contato.
Minha intenção, ao contrário, é a de criar o verdadeiro Código de Defesa do Consumidor. Quem sabe a diferença entre o ruído do rolamento danificado e o de um prego no pneu atritando com o asfalto? Tudo bem, essa é fácil. Mas quem sabe se o azeite utilizado é mesmo extra-virgem? Ou que aquele catéter foi mesmo necessário à intervenção cirúrgica? Ou ainda que o ralo vai entupir de novo se a conexão não for trocada? Se soubéssemos de tudo isso resolveríamos os problemas sozinhos, sem recorrer aos profissionais. Muita gente, pelo medo das trapaças, tem tentado fazer isso, mas o desgaste acaba sendo maior.
Aos interessados no projeto, garanto que por conta da demanda, o Primeiro Guia Ilustrado da Picaretagem Profissional vai ser um sucesso de público e crítica. Se for feito em papel couchet, letras grandes para dar volume e com capa dura, dá para cobrar pelo menos 40% mais caro. Ilustrando com bancos de imagem e contratando estudantes de jornalismo para as entrevistas, é só dar um "tapinha" e em 45 dias sai da gráfica. Se tiver contato na produção da Ana Maria Braga então, pronto! Vive-se de direitos autorais, tornando-se celebridade em 50 dias. Uma boa agência de promoção pode achar divertido e útil mostrar "coerência" contando todo esse processo na apresentação da segunda edição. Vale a pena confiar, os caras manjam sobre o gosto do público.
Lembre-se, contudo, que essa idéia é minha. Eu pensei em tudo isso antes! Se você se apropriar dela ou vir o Guia na vitrine da Cultura, ou fará parte da nojenta conspiração, ou será testemunha da minha incompreendida genialidade.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Inocentes (in) úteis, por favor não encaminhem!


 

Algumas pessoas, como eu, ainda conseguem compreender a política como uma coisa séria e grave. Não digo que seja um jogo limpo ou honesto, não mesmo, mas entendo que gostemos ou não da forma como é praticada, a política traz consequências que impactam concretamente nossas vidas. Percebo, contudo, que para um grande contingente de pessoas as eleições, coligações, candidatos e discursos políticos não são diferentes dos casos extra-conjugais de celebridades, dos lances polêmicos do futebol e das piadas sem graça do dia a dia. Tudo serve para entreter e desviar os indivíduos da árdua e, impossível para alguns, tarefa de pensar autonomamente - como sempre deve ser o pensar - a respeito da responsabilidade de cada um sobre a própria vida e sobre a sociedade em que vivemos. Nesse sentido, quem não é inocente e nem parvo, no meu entender, deveria agir com o mínimo de atenção para com as questões políticas. Mais ainda para com o papel que desempenha em sua dinâmica ao se prestar a determinados serviços.
Digo tudo isso tendo em mente uma moda bastante em voga nesses tempos de internet e de eleições. Vira e mexe, chega à caixa postal um e-mail "encaminhado" contendo falas descontextualizadas; ironias preconceituosas ou mentiras deslavadas, quase sempre muito mal escritas, sobre algum candidato. Até aí, nenhum problema, a democracia pressupõe liberdade inclusive de má expressão e, suponho assim, de "encaminhamento" também. Minha questão surge quando verifico que o encaminhador é alguém que obviamente tem o meu e-mail e que, supostamente, goza de alguma das modalidades da minha simpatia, afinal não me chegam tais mensagens das Casas Bahia.
Impossível conter um certo desapontamento. Se o entusiasta da bobagem é um militante, posso até compreender que no afã de ajudar seu candidato compactue com esses métodos baixos e despolitizantes. Compreendo, mas me desaponto. Acontece que não acredito que as mensagens sejam encaminhadas por militantes convictos de sua baixeja. Nesse caso, apenas me desaponto. Questiono, automaticamente, ou a inteligência, ou a idoneidade daquele que tem meu endereço em sua lista. Às vezes questiono ambos e gostaria que meu nome não estivesse lá. Não é pelo conteúdo da mensagem que acabei lendo, mas pela constatação de que o sujeito é mais um dos que não entendem a complexidade da política, não entende que está prestando um desserviço e, pior, não entende que eu sou um dos que entende tudo isso. Burrice ou inocência que minha vaidade intelectual tende a não perdoar. Resultado: "bode" de alguém que eu nem conheço direito, ou às vezes conheço.
Peço, então, que você olhe se estou em sua lista cada vez que for encaminhar um desses e-mails políticos sobre o qual não pensou detidamente a respeito.
A divergência ideológica não me faz desprezar pessoas, mas sua pobreza de espírito sim. Não sou cristão.
Não que o meu desprezo signifique ou não signifique muito. Mas acho que outras pessoas mais significativas podem pensar de forma parecida.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Limpos e Malvados

Olhando os muros autorizados da cidade, as roupas de grife das pessoas, os comerciais de tv e as revistas das bancas de jornal noto que a sujeira e a descompostura adiquiriram valor estético. Vale dizer que o sujo, o mal enjambrado e o descomposto são hoje "bonitos". Desnecessário dizer que meu estranhamento está baseado em valores estéticos outros, de outro tempo também. Se reparo, comparo, nem que não saiba com o quê. Nesse caso sei, nem por isso valoro ou julgo, ainda que os adjetivos usados digam o contrário. São os meus limites de expressão.
Muita gente abomina essa nova estética. Muita gente acha estranho que alguém possa abominar aquilo que parece tão natural. Para esses, arcaica e abominável deve ser a referência do abominador.
Pois bem, mas não é desse dissenso que quero tratar. Posiciono-me no caso, porém, confessando meu razoável apreço pelo que hoje é: nunca gostei muito mesmo de pentear os cabelos, mas gosto do meu blazer de tweed. Sinto-me portanto, mais à vontade por poder praticar ambos sem causar tanto espanto. Essa licensa social é um mérito do presente.
Estou incomodado com outra questão. Desconfio que a "sujeira" estética desse tempo seja um truque. Um truque para disfarçar a sujeira natural e, portanto, inerente ao ser humano. Mais do que isso, uma tentativa de disciplinar aquilo que não pode ser disciplinado. Mais ainda, uma tentativa desesperada de fugir de nossa inclinação natural, também, ao sombrio, ao feio e ao sujo. Ao que nos vicia, degrada e mata. E ainda assim nos agrada.
Essa desconfiança vem do seguinte: com explicar que a mesma sociedade que vende kits de dreadlocks em cabeleireiros, piercings em botiques, grafites em galerias, batiks e roupas rasgadas em passarelas, e tatuagens em shopping centers seja tão severa com os carboidratos das comidas; com o asseio do corpo; com a queima de gordura nas academias, e com o veto ao tabaco em qualquer lugar?
O que percebo é um pânico quanto à sujeira que invade o corpo, associado a uma valorização da sujeira que ele pode produzir e/ou ostentar.
Afinal, somos naturalmente um pouco "sujos", ou não? Não me refiro aos nossos caráteres, desses não tenho dúvidas.
A idéia de transformar nossa pulsão de auto-destruição em arte pode parecer bem intencionada, mas será que é mesmo isso? Ou será mais uma ilusão que o dinheiro se proporá a realizar?
Venceremos, mesmo, nossa porção fascinada pela própria intoxicação, com um café sem cafeína e admirando a sujeira só pela vitrine?

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Civis do Pensamento


Ilustração: Jo Fevereiro

 Acho que estou perdendo o prazer de discutir. Falo de discutir no sentido de argumentar e ouvir argumentos afim de que os pensamentos originais sejam aprimorados. Percebo que essa prática, exercitada sempre com especial devoção, traz mais incompreensão do que entendimento, mais mágoa do que elevação.
Na realidade não é exatamente como vou tentar descrever, mas é quase. Quando discuto é como se as idéias tivessem autonomia. Como se não importasse o seu sujeito. Não que elas não carreguem consigo as minhas próprias vontades e desejos, mas a porção disso costuma ser menor. Trata-se mais do prazer, puro e simples, de assistir à batalha dos pensamentos como a gladiadores numa arena. Vale a beleza de cada golpe e de cada esquiva; valem o balé que os prenunciam e a bravura dos pensamentos mais débeis tentando resistir. Mas, nesse caso, não se trata de ganhar ou perder. Na verdade, ninguém perde.
Pois bem, mas esse espetáculo só é possível quando de fato não existe interesse subjetivo nem de uma parte, nem de outra. Quando não se está tentando conduzir o outro às cordas para com isso triunfar, provando que é sua, finalmente, a razão. E quando é que temos a oportunidade de discutir nessas condições? Isentos de nossos interesses com pessoas isentas também de seus interesses? Somos todos mais feios, barrigudos, malvados, burros e pobres do que gostaríamos. É bem provável que essas nossas inseguranças estejam sempre presentes no duelo dos argumentos. Perder a discussão é, então, fracassar de novo.
Estou certo de que o apreço cultivado pela argumentação, no meu caso não está vinculado a objetivos práticos. Não sou advogado e nem publicitário. Não ganho dinheiro e nem prestígio com a prestidigitação das idéias no campo profissional. Mas ao tentar praticar esse esporte com as pessoas do meu entorno, acabo perdendo energia, tempo e afetos.
O grande problema é que quase todo mundo, em algum momento, quer falar sério sobre algum assunto e eu, então, penso que se trata de um honesto en gard vindo de outro valoroso espadachim. Que nada! É outro civil do pensamento, que se acha mais feio, barrigudo, malvado, burro e pobre do que eu. Resultado: ao primeiro touché, lança o florete ao solo e saca logo a pistola. Sou obrigado a abandonar o embate tentando simplesmente preservar a pele. Mesmo assim, ainda fica a impressão de que sou impertinente, frio, implacável e, obviamente, sem razão.
Desnecessário dizer que reconheço as pouca-pouquíssimas exceções, mas como não quero esgotá-las por completo, pretendo apreciar, com mais moderação ainda, esse já tão raro prazer.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A doença está na certeza e não na dúvida


Ilustração: Jo Fevereiro

Quem está feliz o tempo todo, ou é bobo, ou atingiu um estado de beatitude que eu não consigo alcançar. Vale quase o mesmo para quem está triste o tempo todo, ou é bobo, ou chegou a um nível de descrença que eu não quero chegar.
Os não bobos estão entre nós, oscilando assustados entre horas tão tristes e outras horas tão... tão felizes. A vós eu dirijo essa reflexão.
Não odeie tanto sua tristeza, nem leve-a tão a sério como gostamos de fazer. Aprenda com ela sobre você mesmo, guarde isso. Repare como a próxima tristeza igual, já não será mais tão triste. Ficamos mais sutis para com as tristezas. Não ame tanto, também, suas alegrias. Pelo menos não tanto, a ponto de se apaixonar por elas. Elas são boas, mas não são tudo. Guarde isso também. Ficamos menos reféns delas. Deixe que venham as tristezas e as alegrias quando elas tiverem de vir, sem o desespero das primeiras e nem a obsessão pelas últimas.
Quero dizer, assim, que essa capacidade de transitar confuso entre os polos é um sintoma da saúde mental das pessoas e não o contrário. A doença está na certeza e não na dúvida, na fixidez e não no movimento. Henri Bergson fala do equilíbrio como algo dinâmico e não estático.
Exercite regularmente, portanto, tristezas e alegreias na medida em que isso não te provoque muita dor, pois ainda não pensei em alongamentos para evitar esse tipo de distensão.
Vivencie com temperança e sabedoria seus conflitos e suas oscilações, porque, a menos que você enlouqueça completamente, a tendência é que você os tenha até o último suspiro.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Jornalismo de Classe Média


Ilustração: Jo Fevereiro

Costumava atribuir os maiores males da imprensa brasileira à estrutura da própria e a sua participação na Indústria Cultural. Não descarto essa questão: são mesmo grandes conglomerados empresariais, ou aspirantes a, engajados no próprio business e na reprodução dos discursos e valores hegemônicos.
Mas, pensando um pouco na Microfísica do Poder de Foucault, tenho sentido maior incômodo ao perceber outros nós dessa grande teia. Um, particularmente, tem me agastado. Ando desconfiado que, passada uma era em que as redações eram povoadas por um operariado da informação minimamente consciente de suas possibilidades e de seu papel contra-hegemônico, hoje a notícia é produzida, quase exclusivamente, por uma pequena burguesia carreirista, mal-informada e bastante conservadora, quando não reacionária.
Cito como exemplo uma questão controvertida: a cobertura dos casos de pedofilia no clero. Vejo que na maior parte das matérias falta a mínima compreensão do problema real. A ênfase costuma reacair sobre a moralidade de padres, bispos e papas. Cobra-se posturas desses agentes; explora-se a indignação das pessoas e, às vezes, apela-se à psicologia de botequim para agravar os delitos praticados. Está errado. Não são essas as questões que deveriam absorver a energia de jovens jornalistas.
O cardeal Joseph Razinger não fez mais do que a sua obrigação ao compor com padres pedófilos quando ainda não era papa. Os bispos que fazem isso hoje, idem. Coisas assim sempre, repito, sempre aconteceram, vide Giovanni Bocaccio. Se o catolicismo atingiu o segundo milênio de existência foi justamente porque, ao longo da história, cagou e andou para o que pensavam os homens e suas instituições de cada tempo. A lógica sempre foi a de absorver com a mais absoluta parcimônia, se não tiver outro jeito, as demandas de cada tempo. Os ruídos se dissipam; as modas passam; as ideologias sucumbem e a igreja continua.
Pense na Reforma Protestante. Parte da humanidade protesta veementemente, e o que faz a igreja católica? Reafirma seus valores. E assim foi com as guerras, com as revoluções liberais e com as socialistas. "Tudo isso vai passar, como sempre passou e quando passar, eles voltarão, porque só aqui encontrarão certezas maiores do que as dos seus tempos sempre confusos" devem dizer acertadamente os dirigentes católicos, que operam dentro de outra temporalidade. "Não à camisinha e não ao aborto", seja em que tempo for. Trata-se apenas de manter a coerência interna e não a coerência com qualquer outra verdade científica, tão volúvel desde Ptolomeu até Einstein.
A qual forum estará então submetido um padre que cedeu às tentações que não pouparam nem Aquiles? Para isso existe o direito canônico, a confissão, os deslocamentos de diocese, as penitências e o silêncio imposto. Até a excomunhão, mas só em casos inadimissíveis, não nesses com os quais estão lidando a séculos, mas só agora resolvemos questionar.
Voltando à questão principal, é ingênuo insistir em cobrar satisfações de um padre pedófilo, ou de seus superiores. Eles já se confessaram e se penitenciaram, estão em paz, portanto. Indignar-se com suas respostas é ignorância e autoritarismo. Ignorância por desconhecer com quem se está lidando e, autoritarismo, por querer que operem dentro de uma moralidade que não é a deles.
Em nosso país e em nosso tempo pedofilia é crime, ponto. Temos um Estatuto da Criança e do Adolescente, é disso que se trata. Jornalistas sem preocupação de justificar o próprio catolicismo deveriam apontar seus teclados para o poder público e só para ele, se realmente veem isso como um flagelo e não como uma oportunidade de se destacar na profissão.
Nós não admitimos pedofilia, não importa se vem da família, dos astros da música, ou de uma coorporação milenar. E é o estado democrático que foi inventado justamente para disciplinar a minoria cuja moralidade não consegue conter, por si mesma, suas pulsões anti-sociais. Que os advogados de defesa se incumbam de apurar as razões e atenuantes quando houver. Se cobrar providências é papel da imprensa e acho que é, que cobre de quem pode tomar as providências que importam.
Entendo que talvez seja muito difícil para os novos jornalistas, ampliar sua compreensão sobre os problemas do mundo; questionar a própria moralidade; perceber-se como agente histórico e rever o estado em seus papéis, ao menos nos fundamentais. Afinal, é uma dificuldade bastante recorrente em toda a classe média.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Malefícios não ideológicos da concorrência


Ilustração: Jo Fevereiro


Sempre ouço falar das vantagens que a concorrência do sistema capitalista nos proporciona. Penso que quase todas enquadram-se em três categorias: diversidade, aprimoramento e preços dos produtos. A princípio, todas elas são mesmo vantagens, mas quando examino melhor aparecem as dúvidas.
Já não sei até que ponto os diversos produtos são feitos para melhor atender as nossas necessidades, ou se, no atual estágio da competitividade, são lançados objetivando a criação de novas necessidades, até então absolutamente desnecessárias. Não quero apelar às teorias econômicas para as quais o fenômeno é evidente desde o século XIX, proponho a experimentação empírica. Até que ponto precisamos mesmo de um sabonete para lavar as mãos, outro para os cotovelos, outro para as partes íntimas e um outro ainda para o resto do corpo ainda não esquartejado pela Johnsons ou pela Natura?
Aprecio café de tipo arábica cultivado em regiões montanhosas com média torrefação, mas confesso que não sou capaz de reconhecer a diferença entre um creme dental que proteje meus dentes contra 12 doenças bucais e outro que só me proteje de 9. A ciência, nesse caso, me parece evocada de maneira fundamentalista e obscurantista. Em outras palavras, qual é a nossa real condição de reconhecer o grau de aprimoramento do produto que compramos? Voltando ao "sabão"; muitos sequer reconhecem a diferença entre um sabonete normal e outro com 50% de creme hidratante; muitos, também, percebem que não há qualquer semelhança entre eles, mas quantos sinceramente podem argumentar a favor de um outro que promete 52,3% de creme hidratante? O propagado maior aprimoramento de um produto já não nos é mais sensível. Ou estaria apenas eu, interrompido em minha sensibilidade e espírito científico por minha condição de classe? Só "investi" na minha sensibilidade sobre o café, mas não tive grana para educá-la para as sutilezas da proteção dental e da hidratação cremal, é isso? Onde iremos parar? Na cientifização e/ou estetização do consumo de absolutamente todo produto, desde o vinho até o sapólio? Matemos por dinheiro, então! Pois só assim será possível sobreviver.
Por fim os preços. Diante de tudo isso, ainda que os preços possam se rebaixar com a concorrência, vem a grande pergunta: pelo que é, mesmo... que estamos pagando com a própria vida?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Convite ao Divã


Ilustração: Jo Fevereiro

Pessoas por quem possuo profunda admiração intelectual e afetos dos melhores já me disseram que entendem a necessidade de fazer análise, mas não fazem por achar que sua capacidade de auto-análise tem bastado, "por enquanto".
Quero compartilhar uma reflexão, recém refletida, que pode contribuir para acelerar esse processo, um dos poucos que hoje eu recomendaria a alguém que apressasse. Creio mesmo que a auto-análise basta por um tempo e que aqueles que sempre a cultivaram são pessoas bem diferentes. E, do meu ponto de vista, aquelas que mais me cativam. Creio, porém, que chega um ponto em que a auto-análise deixa de ser eficiente.
"Intuo que a razão" disso esteja mais próxima do seguinte: tem uma hora em que não queremos mais sínteses a nosso respeito. Estamos mais dispostos ou obrigados a lidar e conviver com as nossas próprias incapacidades e incoerências. O problema é que, quando pensamos sozinhos sobre nós mesmos, não nos é possível deixar de realizar a síntese, ou a reunião do que foi pensado. Seria, mais ou menos o seguinte: se eu tentar olhar para mim mesmo, para ver como realmente sou, os olhos que me verão serão sempre os olhos que queriam me ver e a visão de mim mesmo será, então, sempre alterada por eles.
Não sei se me esclareço, mas sempre posso tornar-me mais obscuro tentando: se todo objeto é objeto de um sujeito, como então poderia eu, que sou o sujeito de qualquer coisa que realize, fazer-me objeto de minha própria análise?
Acho que é por isso que Psicanálise é Psicanálise e não "Psicosíntese". Chega o momento em que não se trata mais de nos explicarmos para nós mesmos, mas talvez apenas de buscar uma assistência nessa outra fase confusa em que, para viver a vida, a razão não é mais suficiente e a religião ainda impossível.
Em síntese: "Freud não explica ninguém, nunca quis explicar!" Mas a análise pode ajudar a viver com as dúvidas que a auto-análise insistirá em tentar sanar.

domingo, 28 de março de 2010

Projetos Musicais S/C Ltda


Ilustração: Jo Fevereiro
 
Estou intrigado com uma coisa: qual será o real significado da atual mudança de nomenclatura dos coletivos musicais?
Estou chamando de coletivos musicais as pessoas que se reunem para tocar instrumentos e cantar, um hábito bastante comum e antigo entre os seres humanos.
Esclareço a inquietação sem retroceder muito no tempo. Décadas atrás falava-se em "conjuntos" musicais; também já se usou dizer "grupos" de música; os mais jovens se acostumaram com a idéia de "bandas" desse ou daquele estilo. Hoje um novo termo vem se consagrando: "projetos musicais".
Será mais um traço da chamada pós-modernidade que, em sua pressa, só educa os olhares e os ouvidos para o que é efêmero? Sempre que ouço o termo, ainda que associado a excelentes resultados musicais, não deixo de pensar que trata-se de algo feito para não perdurar. Quem ouviu, ouviu.
Talvez essa dificuldade para construir, cultivar e suportar relações sólidas e duradouras que marca o nosso tempo tenha invadido também os coletivos musicais. Não há mais como nem porquê obrigar a convivência das próprias vaidades e idiossincrasias com as dos demais integrantes de um grupo. Temos um projeto musical; nos reunimos, ou às vezes nem precisamos desse contado todo, e realizamos o "projeto". Depois cada um segue o seu caminho e foi bom - ou não - para todo mundo.
É justo, mas não é animador, como dizia um personagem de Gorki. Não se trata de lamentar, afinal, nem sei o que se perde e o que se ganha com isso, talvez a Billboard saiba, ou melhor ainda as publicações que sobrevivem das intrigas e querelas internas dos grupos. Tento apenas compreender.
Só não me animo por pensar que essa lógica se parece um pouco com a dos grupos de trabalho do ambiente corporativo, organizado não mais de forma hierárquica e sim matricial, com lideranças alternadas, criações coletivas e outras histórias. Tudo em função de cada projeto.
Não duvido da eficiência do formato, nem nas empresas, nem nos "empreendimentos" musicais. Mas penso que, se no primeiro caso, a eficiência tem medida certa e critérios objetivos de apuração, no segundo não precisava ter. Aliás, entre outras coisas, era a falta disso que costumava filiar a música à arte.
Prevejo para os próximos anos um curso universitário concorrido de Arquitetura de Empreendimentos Musicais, como já existe para DJs e, quem sabe, para Street Artists.
Também não gosto muito, mas prefiro quando é o mercado quem busca inspiração na arte.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Lição do Caracol


Ilustração: Jo Fevereiro

Estava a meio quarteirão de casa, andando meio apressado pela calçada, quando vi um caracol cruzando lentamente o meu caminho. Atenção para o que vou dizer agora: o caracol era tão grande que parecia um fusca. Não estou brincando, é verdade! Posso garantir que nenhuma substância afetava minha percepção naquele momento. Ele tinha pelo menos um palmo de comprimento e transportava sua moradia que mais parecia um desses triplex com 5 vagas e espaço gourmet que os folhetos de pré-lançamento costumam anunciar nos Jardins.
Fiquei paralisado, mesmo porque, enquanto aquele colosso de antenas colossais se arrastava indiferente, meu caminho permaneceu realmente interrompido. Tive um pouco de medo e não me envergonho por confessar, o bicho era  estranho mesmo e eu não imaginava que isso existisse, se imaginasse, seria numa ilha do arquipélago de Java, perto de onde vivem os lagartos de Comodo e outras criaturas pernósticas. Mas ali, atrás do Maksoud Plaza, era como se de repente a fronteira entre a realidade e a ficção tivesse sido rompida.  Naquele instante não me pareceu impossível que ele simplesmente me cumprimentasse pelo nome e seguisse o seu caminho; que revelasse uma profecia catastrófica a meu respeito; que me pedisse para levá-lo ao meu líder, ou que cuspisse em mim uma gosma mortal.
Assim que minha confusão mental se dissipou, num reflexo adquirido na contemporaneidade, adotei aquele ar de indiferença que aprendemos a fazer diante da diversidade, por mais diversa que ela seja, e passei a olhar se não havia alguém filmando minha reação para colocar no YouTube. Reparei se não tinha nenhum fio de nylon esticado na calçada e se os lentos movimentos do ser não revelavam alguma sincronia robótica. Uma outra vez fiquei procurando o miado de um gatinho que parecia em apuros e descobri um celular escondido na grama do jardim emitindo o som, enquanto isso o porteiro e o servente do prédio riam da minha cara. Dessa vez, não. Não havia nada.
Livre do pavor imediato e natural diante do desconhecido e do pavor secundário e social do ridículo, acompanhei o imenso caracol até que ele chegasse ao mato que almejava, com a ansiedade típica de um caracol. Esperei até que ele se perdesse no meio da relva. Depois esperei um pouco mais, olhando o rastro úmido deixado na calçada. Segui, então, o meu caminho, eufórico e maravilhado, como uma criança que viu mesmo uma coisa que nenhum adulto vai acreditar.
Passo todos os dias pelo mesmo lugar e, por mais apressado que esteja, sempre diminuo a passada para ver se encontro de novo o caracol. Não encontro, mas enquanto procuro por ele, penso que aquele bicho estranho deve estar onde queria estar, sem ter ido de pressa e sem ter ido muito longe.
Faço desse pensamento a lição que aquele magnífico caracol me ofertou.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Cordialidade vem mesmo do coração?


Ilustração: Jo Fevereiro

Sempre achei a cordialidade uma virtude admirável nas pessoas. Uma saudação matinal; uma porta aberta de elevador; uma prioridade concedida na passagem; um sorriso gratuito, um pequeno gesto afável. Tudo isso quando vem do cór torna o convívio entre as pessoas não mais humano, porque o contrário disso é tão humano quanto, mas pelo menos mais estético, elevado e prazeiroso. Continuo achando tudo isso. Mas ultimamente tenho sentido a necessidade de pensar um pouco mais a respeito. O conflito básico é o seguinte: em que medida minha própria cordialidade me impede de marcar posição diante de pessoas que, embora também cordiais, usam desse código para angarear cumplicidade e assim revelar, no instante seguinte, posturas e convicções que considero execráveis?
Posso exemplificar. Um dia desses uma simpática vizinha aproveitou a cordialidade estabelecida no curto trajeto entre o térreo e o nono andar para perguntar se nossa filha, de quatro meses, não se assustava com a cor da pele da moça que nos ajuda em casa. A pergunta pareceu-nos tão descabida e surpreendente que só tivemos tempo e reflexo para dizer, cordialmente, que não.
Passado o tempo, estávamos Polyana e eu absolutamente transtornados não com a pergunta da velhusca, mas com nossa insuficiente resposta. O que queríamos mesmo era ter dito: "não minha senhora, nossa filha ainda não teve tempo para ser envenenada por essa substância que a senhora acaba de flatular e faremos o possível para imunizá-la tanto da meningite e da varíola quanto desse maldito preconceito. E, a propósito, não se incomode mais em nos cumprimentar sua fascista decadente e nociva. Estamos em trincheiras opostas".
Confesso que pensamos nessa resposta em termos muito menos cordiais do que apresento aqui. Na verdade nem mesmo o cuspe na cara e a expulsão sumária do elevador foram descartados em nossa fantasia de reparação.
No dia seguinte ela nos cumprimentou com a cordialidade de sempre e já não havia mais ocasião para marcarmos nossa posição como gostaríamos, afinal, nós apreciamos a cordialidade.
Persistem assim as seguintes questões: não será esse apreço pela cordialidade o resquício de uma criação obsoleta? Em que medida a cordialidade é um vício que reprime nossa necessária expontaneidade? Estou reduzindo erroneamente a cordialidade ao simples encontro fortuito entre desconhecidos? Somos cordiais porque aspiramos o afeto de todos? Se restringirmos nossa cordialidade apenas aos iguais, seremos ainda cordiais?
Enfim, agradeço a você meu gentil leitor, mas vá às favas, se nada do que eu disse te fizer pensar no assunto.
Cordialmente,

domingo, 14 de março de 2010

Zé dos limões


Ilustração: Jo Fevereiro

Meses atrás, saía do estacionamento de um shoping quando vi um garoto com não mais do que dez anos chorando a plenos pulmões na beira da calçada. Porque a coisa pareceu-me séria, encostei o carro e desci para ver o que é que tinha acontecido. Foi difícil fazer o Zé me contar sua dor. A cada frase, recobrava o choro com fôlego renovado, precisei dar-lhe um chaqualhão para que então me explicasse que um garoto mais velho havia lhe roubado não apenas os trocados que conseguira durante o dia, mas também os preciosos limões que sua mãe dera-lhe para vender.
Embora dramática a história, fui instantaneamente invadido por uma espécie de beatitude. Estava ao meu alcance curar a asa partida do pequeno anjo. Fizemos juntos as contas do dinheiro perdido e do quanto arrecadaria com os limões roubados. Exatamente R$ 28,00 livrariam o mini-operário das sanções do feitor que tanto o apavoravam. Com R$ 30,00 dei por encerrado o problema. Zé não foi capaz de perceber a grandiosidade do meu gesto, despediu-se de mim sem grande entusiasmo ou gratidão. Pus a falta de reconhecimento na conta das injustiças do mundo e me senti maior ainda por isso.
Ontem, quando saía do mesmo estacionamento, vi o mesmo Zé, na mesma calçada, chorando do mesmo jeito. Na hora entendi tudo. Primeiro me senti um tremendo idiota, lesado por um garotinho de dez anos; no instante seguinte achei engraçado e quase reverenciei a astúcia do Zé. Depois foi batendo uma tristeza por pensar que, seja como for, o Zé é só uma criança cuja ingenuidade foi sequestrada pela dureza da vida.
Alguma coisa dentro de mim, contudo, insiste em pensar que o pobre Zé continua vítima do mesmo malfeitor que, da outra vêz, roubou sua alegria e suas possibilidades.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Somos todos meio matutos


Ilustração: Jo Fevereiro

Andei pensando esses dias sobre o quanto nós, brasileiros, somos ainda matutos. Isso pode ter uma leitura otimista e romântica, como quase sempre tem mesmo, mas também pode ser visto de maneira crítica e suspicaz.
Esclareço que estou considerando "matutia" simplistamente o vínculo com a terra, com o tempo natural e com tradições ancestrais.
Todos nós conhecemos algumas plantas e suas possíveis aplicações; resmungamos por não poder dormir na hora precisa em que estamos sonados, ou comer quando sentimos fome; sabemos de alguma simpatia para parar de chover no meio do feriado. Acredito que essas coisas sejam realmente mais difícies para um cidadão de Manchester.
Fiz, imprecisamente, as contas e concluí que pelo menos um bisavô de quase todo brasileiro com mais de 20 anos veio do campo. Faça o teste. Se você ficou de fora e está lendo esse texto, ou está amaldiçoado pela família, ou está espionando para saber o que anda pensando a plebe.
Tenha em conta que cem anos atrás esse país era todo uma grande fazenda. Até os mais conectados entre nós estão geracionalmente ainda muito próximos da vida rude e rural. Mesmo com estudos em Paris, ainda se ouve questões relativas a uma velha tia do interior que resgata algo em nós.
Talvez seja exatamente isso que faz do Brasil um país jovem. Trata-se de uma juventude que tem a ver com a trajetória das nações que: são infantis quando plenamente rurais; jovens quando transitando como nós, e velhas quando plenamente urbanas e asfaltadas.
A crítica e a suspeição surgem diante da seguinte questão: essa nossa jovialidade meio matuta é essencialmente boa, mas ao invés de servir a nossa autonomia e a nossa liberdade, pode restringir-se, como não é difícil, à estagnação ou ao simples arremedo de exemplos dados.
Correndo os riscos da adesão ao eurocentrismo e da introjeção do colonizador, sou hoje capaz de entender o arrebatamento de qualquer alemão pelo "exotismo" da nossa gente. Somos cheios de ímpeto e de sonhos; sensuais e românticos; alegres, maliciosos e esperançados. Somos agora o que foram muitos povos séculos atrás. Personificamos o passado tão remoto de um sueco, que ele não é capaz de se reconhecer entre nós. Perde-se, então, fascinado e feliz em algo que lhe parece alheio e misterioso.
Oxalá saibamos amadurecer.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O Carlos virou mendigo


Ilustração: Jo Fevereiro

Conheci o Carlos quando tinha 18 ou 19 anos, eu estava na faculdade de História. Era um tempo em que tudo parecia mais simples: de um lado estavam as mazelas do mundo e o capitalismo como arquiteto delas; do outro, a vida bacana que o socialismo parecia poder proporcionar. Entre os dois, apenas uma questão de vontade ou de falta de.
Carlos era executivo de uma multinacional americana. Rico, culto, bom e cheio de maneiras elegantes. Mais nobre do que burguês. Meu ódio de classe não foi capaz de abarcá-lo e acabei me tornando seu amigo. Que bom!
Um dia ele me disse que havia cansado de vender pó de arroz para quem não tinha nem arroz para comer. Sabia a resposta certa num certo treinamento em Nova Iorque, mas deu, de propósito, a resposta errada. O dilema proposto era o seguinte: Um subalterno era a pessoa indicada para abrir uma nova filial em outro estado. Isso significava uma considerável promoção com aumento significativo de salário. A filial seria desativada seis meses depois por decisão estratégica e o subalterno seria desligado sem mais. O empenho total do funcionário era condição absolutamente necessária. Feliz e lisonjeado, o subalterno comenta com o executivo, informal e ingenuamente, seu projeto de hipotecar a própria casa para proporcionar à família uma vida mais próspera e melhor no novo estado. Pergunta: expor ou não, ao funcionário, os reais objetivos e intenções coorporativas?
Carlos, impertinente, mais do que demitido, acabou excomungado pelo mercado. Perdeu todo o seu status e, com ele, a família e a vida que lhe parecia sua. Foi cursar, aos cinquenta anos, Sociologia no prédio ao lado do meu. Tornou-se referência para mim.
Chegamos a trabalhar juntos em alguns projetos que nos renderam pouco dinheiro e muito prazer. Aprendi com ele a apreciar a música clássica; a investir em minhas metáforas literárias e a sair dignamente de um restaurante quando os preços do cardápio são além das minhas possibilidades. Aprendi bem mais.
Há cinco anos perdi o contato com o Carlos por conta de nossa falta de talento para as convenções e pela similar apreciação da liberdade própria e do outro.
Na semana passada, chamou-me a atenção um homem que revirava o lixo em frente ao Ponto Chique do Largo do Paissandu. O mendigo tinha calças de veludo e um sapato marrom com fivelas que um dia foram douradas. Num certo momento percebeu que seu comedido garimpo dificultava a passagem de uma senhora que, escorada em sua bengala, ensaiava alargar o trajeto para desviar da cena/obstáculo. Eu vinha logo atrás e notei que o desgraçado não apenas interrompeu sua pesquisa, mas também brindou a senhora com um sorriso gentil e respeitoso, abrindo caminho para o seu lento deslocamento.
Não vi se ela retribuiu, mas vi que era o Carlos. Ficamos frente a frente e meu reflexo foi o de abrir os braços. O dele também, mas no instante seguinte ele olhou para si mesmo e preferiu interromper o abraço. Senti como se tivéssemos nos abraçado assim mesmo. Ficamos alguns instantes nos olhando sem que nada fosse dito, quase nos abraçamos pela segunda vez. Só então eu falei: "Carlos, Carlos, meu camarada, como foi que isso aconteceu?". Ele respondeu com o seu sorriso habitual: "E como não aconteceria, meu querido amigo?". "Pois bem, meu guru, e o que eu faço agora? Te ofereço um almoço... algum dinheiro... moradia provisória... emprego...?". "Um café, um café expresso e curto, se você puder e não se incomodar".
Encostamos no balcão do Canelinha sob os olhos severos e contrafeitos do barman. Carlos bebeu seu café como um diplomata dinamarquês. Tive vontade de fazer-lhe mil perguntas, mas não fiz nenhuma, esperei que ele acabasse o seu precioso café, para então começarmos a tratar de como resgatá-lo de tão indigno infortúnio. "Então, meu amigo - disse ele ao depositar a xícara no balcão - como está sua vida? Você já entendeu porque o Eric Satie é um compositor frívolo? Assumiu-se como escritor que é? Deixou de se preocupar com o julgamento alheio sobre suas atitudes? Ou simplesmente parou de pensar em tudo isso?".
Minha resposta com a cabeça foi negativa para todas as perguntas. Carlos, então, estendeu o braço sobre o meu ombro e prosseguiu "não se preocupe, meu caro, isso virá com o tempo, mantenha a vitalidade e a serenidade, é assim mesmo. Se um dia precisar conversar, estou sempre por aqui nesse horário".
Diante do silêncio restabelecido, Carlos quase levou a mão ao bolso, mas rendeu-se a sua condição erguendo meio constrangido as grisalhas sobrancelhas. Paguei a conta com dinheiro trocado e saímos do café. Cada um em uma direção. Parei e virei para trás "Carlos! - disse alto quando ele já se ia - eu encontrei aquela mulher e temos uma filhinha". Ele também parou e se voltou, agora com um sorriso maior e resplandescente - "Ah! Isso é bom, meu amigo. Isso é mesmo muito bom!". Seguimos então nossos caminhos.
O Carlos virou mendigo e é, ainda, uma referência.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Um segredo masculino


Ilustração: Jo Fevereiro

Separei o especial de hoje da Folha de São Paulo sobre comportamento sexual, mas ainda não li. Fiz questão de não ler, porque já tinha esse artigo em mente e não queria influências circunstanciais. Talvez reveja minhas impressões à luz de tão científica pesquisa, talvez não.
O segredo que queria divulgar, sem pedir perdão ao gênero, com o qual não me sinto inspirado a ser solidário, é o seguinte:
Mesmo tendo em vista uma relação conjugal sinceramente amorosa e razoavelmente harmônica, entre duas pessoas suficientemente íntegras e inteligentes, os homens tendem a decepcionar suas mulheres por conta de seu interesse por outras mulheres. E isso ocorre, na minha visão, por tres razões fundamentais.
Primeiro. Salvo contingências vinculadas a discrepâncias etárias, ou a distúrbios psicológicos, em geral, os homens tem um apreço pelo sexo mais entusiasmado do que as mulheres.
Segundo. Salvo os casos em que a questão tenha sido psicologicamente trabalhada, os homens, diferentemente das mulheres, tem uma necessidade maior de reconhecimento e acolhimento de tipo maternal.
Terceiro. Salvo convicção equivocada, ou absolutamente resolvida, o homem quer se perpetuar através dela.
Traduzindo: um homem comum espera de sua mulher sexo incondicional; admiração por seus feitos e acalanto por seus fracassos, sem que isso comprometa sua "infinita" potência; e quer ter filhos com ela.
Qual mulher sozinha é capaz de reconher tantas carências e de responder a elas com a presteza exigida sem comprometer suas próprias individualidade, necessidade, aspirações e querências?
Sempre generalizando um pouco, pois sem isso não é possível refletir a respeito, é certo que, em algum momento desse natural descompasso, o homem reconheça em qualquer mulher das que o circundam, maior entusiasmo para o sexo, mais pronta disposição para o acolhimento do guerreiro, ou maior apelo à procriação. Afinal, essa capacidade eventual existe em todas as mulheres, inclusive nas com as quais se casaram.
Pensando, e correndo os riscos intelectuais por isso, que o casamento ou a união matrimonial em nosso tempo ainda tenha um peso moral maior para as mulheres do que para os homens, é bem possível que ele não seja capaz de subordinar suas aflições instantâneas a um pacto mais subjetivo de fidelidade.
Quer dizer: mulheres sensuais dispostas ao sexo total; mulheres santas e devotadas, ou mulheres naturalmente férteis aspirando a procriação, todas elas podem ser um convite irrecusável ao delito conjugal.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Ignorância teórica sobre amizade



Ilustração: Jo Fevereiro

Grandes pensadores como Platão, Agostinho, Kant, Ortega y Gasset e meu caro Erich Fromm entre muitos outros, já se debruçaram lindamente sobre a questão do amor. Confesso que, nem sobre essa questão, conheço seu pensamento como gostaria. Mas o que mais me intriga é que eu não tenha, assim de memória, nenhum filósofo consagrado por suas apreciações específicas sobre a amizade, tipo peculiar de amor. Certamente é falta de repertório, pois seguramente alguém já se dedicou convincentemente ao assunto.
Talvez não tenha sido devidamente tocado por nenhuma leitura a respeito por considerar-me auto-suficiente, não no entendimento, mas na compreensão do assunto. Do alto de minha arrogâcia, não preciso de explicação, ao contrário, eu explico, eu sei porque eu sinto, ou o contrário.
A amizade é um amor devotado a princípio, mas depois, devotado também. Primeiro eu escolho e determino; depois parece não fazer sentido e eu questiono sua razão; finalmente ela se impõe e eu sucumbo ao seu prazer irracional, consciente disso. Delibero a favor dela, por fim.
Lamento não ser capaz de preencher a lacuna teórica sobre a questão como cheguei a enunciar que conseguiria.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Rouba, mas não faz

"Conheço o monstro porque vivi em suas entranhas"
José Marti

É incrível a sabedoria popular! Quando a expressão "rouba mas faz" foi associada a Paulo Maluf anos atrás, tudo que fiz foi lamentar a ignorância e a mísera compreensão política do nosso povo sofrido. Não me ocorreu, como faço agora, tentar entender o significado profundo do slogan.
Recorramos à consagrada teoria. Max Weber entendia que as sociedades em algum momento transitariam do estado patrimonialista para o burocrático. Basicamente é o seguinte: no começo os dirigentes administram tudo como se fosse patrimônio pessoal. Se precisam construir uma ponte, contratam a empresa do seu irmão. Se precisam de um conselheiro financeiro, empregam seu brilhante sobrinho. Com o passar do tempo e o avançar das demandas democráticas é preciso mudar um pouco o modelo: se precisam construir uma ponte, fazem uma licitação para contratar a empresa do seu irmão. Se precisam de um conselheiro financeiro, abrem um concurso público para empregar seu brilhante sobrinho.
Em outras palavras, a burocracia se estrutura baseada no mérito e na transparência e tem por objetivo conter os apetites patrimoniais dos gestores públicos. Ela veio, enfim, para que o administrador "faça, sem roubar". Na prática, porém, o que a burocracia faz é empedir a razão mesma pela qual a absoluta maioria das pessoas ingressa no poder público. Isso não faz com que a pulsão delinquente do sujeito seja contida, ao contrário, faz com que passe o dia inteiro arquitetando mecanismos para atingir seus objetivos passando ao largo dos controles burocráticos.
O resultado disso é que verdadeiramente não sobra tempo para "fazer", uma vez que "roubar" exige tanto esforço e tantas horas de trabalho. São reuniões estratégicas, assembléias, comissões, conselhos, grupos de trabalho, etc... cujo principal objetivo é garantir melhores condições individuais para o exercício daquilo que realmente motivou o engajamento público da maioria dos dirigentes.
Desse modo chegamos a um ponto em que a burocracia, cada vez mais eficiente, está tornando quase impossível a realização dos interesses patrimônias dos gestores. Quase impossível, mas com dedicação e obstinação, sempre ainda possível.
As tarefas vinculadas ao interesse público, nesse caso, além de continuarem não sendo prioritárias, tornaram-se um incômodo quase insuportável. Um encosto espiritual. Um entrave na agenda de cada dia. Mas, para a alegria dos gestores, hoje já é possível terceirizar essas odientas tarefas a uma OSCIP cheia de dignidade e disposição. Além disso, a entidade do Terceiro Setor certamente estará disposta a devolver ao generoso dirigente que operou sua contratação algo daquele velho e benfasejo patrimonialismo. Se o retorno patrimonial não for direto e em espécie, será através da contratação da empresa do irmão e do acolhimento ao brilhante sobrinho.
Em resumo, o slogan "rouba mas faz", é anacrônico, romântico até. "Roubar" quantinuará sendo a regra principal, o fogo sagrado da confraria, mas "fazer" já não é mais tarefa do homem público. Falta-lhe tempo para isso.