quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Memória feminina


Homens e mulheres não são iguais. Os homens não são iguais entre sí e nem as mulheres, que dirá homens e mulheres uns em relação aos outros. Dispensável dizer que, por outro lado, somos todos indistintos em uma porção de coisas. Mas, levando em conta o relacionamento heterossexual entre um homem e uma mulher,  e supondo ambos heterossexuais, as diferenças podem significar mais do que traços peculiares e inofensivos.
Apenas para citar um exemplo, sugiro uma reflexão sobre o valor da palavra e do gestual alheios para a mulher e para o homem, na hipótese de uma divergência acalorada. Se em uma discussão de casal, o homem cospe palavras brutas, talvez tão brutas quanto as que ouviu, o fraseado será armazenado pela mulher num compartimento específico da sua memória que parece blindado ao esquecimento. Anos depois a mensagem ecoará como se emitida agora mesmo e desprovida do contexto que a produziu. O tal compartimento de memória, ao que parece, é também impermeável ao perdão, só a vingança o esvazia.  Quando se tratam de gestos agressivos masculinos, a situação é pior ainda: uma batida de porta, um cantar de pneu, ou um soco na parede - semelhantes a outras trogloditices protagonizadas também pela sensível fêmea do casal - serão, para sempre e em função da conveniência, sintomas passíveis de evocação quando se trata de atestar a insanidade e o desequilíbrio do homem. E nesse caso é melhor não viver para esperar a vingança.
O mais curioso de tudo - que é outra diferença verificável -  é a preferência do gênero pelo discurso pacifista e não beligerante, pela abominação indignada ao confronto e ao atrito como características do retardo civilizatório masculino e de sua pequenez d'alma. O homem, em geral, não se envergonha tanto de seu papel de imbecíl combatente na guerra insana da sobrevivência, a mulher sim, mas nem por isso combate com menor crueldade e nem com menos sucesso.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Viver é perigoso, escrever também


"Viver é perigoso" como dizia Riobaldo em Grande Sertão: veredas. Ou seria cumpadre dele Quelemém quem dizia? Não sei mais e não vou checar! Ficou para mim como se fosse Riobaldo a dizer e não faz diferença, afinal o próprio personagem viveu enganado até o fim da história. Mas, que viver é perigoso, lá isso é. Escrever também.
É coisura traz coisura que apoquenta o pensar do sujeito de pensar pensante. Desverdades ementirantes que desarretam o caminhar em pé do bicho que faz que vai, num vai, mas num fica de falta de ir. Gôsto que noitece gostoso, manhece dissaboroso, ressegosta dispois, daí foge do se saber gostar. Querência dessabida, sabida e despedida. Tiro que regaça o preá no ricocheteio do trabuco ferrujoso pontado pro jacu de asa abraçosa. Palavra maldizida com doutoragem de bendição. Contra-covardia em noite de festar paziguidão e descoragem de valentar a eniminguisse do excumpadre enimingado.
Viver é perigoso. A contentação de visar visão boa de pessoa apessoada cofessa pecado excomundado. Fiança na fé que volta em recaminho, quando descaminha, desacredita fé vindoura de qualquer outra venitura. Gratidão esperançada, sujeitada e anteagradecida, se negada, desagraça obrigacionamentos graciosos, anônimos e despensados.
Viver é perigoso, escrever também.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Esperar sem enlouquecer


Acordei, uma madrugada dessas, ansioso com o resgate dos mineiros chilenos. Fiquei, como muita gente, bastante aliviado ao saber que tudo estava correndo bem e que, um a um, todos iam sendo trazidos à superfície sãos e salvos. Talvez estivesse me sentindo também um pouco soterrado junto com eles. Em parte por compaixão, solidariedade no sofrimento alheio, em parte pela asfixia própria dos desabamentos nossos de cada dia. Quem é que, vivendo a vida cercado de pessoas, expectativas e forças naturais, não se sente desolado, de vez em quando, num espaço reduzido, sombrio e desprovido, sonhando com uma operação externa de resgate?
Creio que o mais emocianante de todo esse episódio tenha sido perceber que, contrariando vários ensinamentos, às vezes nosso destino e nossa felicidade depende mais da importância que os outros nos conferem, do que das nossas próprias ações. Não recomendo, de forma alguma, levar a vida apostando nisso, perderíamos então nossa ilusão de autodeterminação tão necessária a muitas de nossas realizações. Mas o precedente permite pensar que, em certas circunstâncias, nossa única parcela de colaboração com a própria salvação é o discernimento das próprias limitações e a fibra para resistir um pouco mais. Não falo nem da esperança, mas compreendo a importância dela para nos animar a resistir um pouco mais. Falo apenas daquilo que se pode intentar: compreender a situação e resistir. Esperança e fé, tem-se ou não.
Os mineiros do Chile entenderam logo sua situação e conseguiram resitir. Aqui fora operou-se um milagre, um belo milagre humano! Daqueles que tanto dignificam e justificam nossa humanidade. Voltaire, uma vez, por conta do terremoto que destruiu Lisboa em 1755, subiu ao púpito do parlamento francês para dizer que era contra o terremoto. Foi assim também no Chile, o povo e as autoridades foram contra o desabamento e a favor dos mineiros. Fizeram uso da capacidade humana reunida e da vontade humana de realizar, assumiram os custos inerentes ao trabalho e, simplesmente, resgataram os mineiros. Que coisa linda! É, ou não, muito mais do que andar sobre as águas por puro exibicionismo?
Eresias a parte, lembro que os mineiros saíram salvos por mérito alheio, mas saíram sãos e sobreviveram para sair, por mérito próprio.
Às vezes, apenas esperar confinado, lidando com a escassez e cuidando para manter a sanidade é o mais sábio e digno a fazer, mesmo em catástrofes individuais. A humanidade e o outro são capazes de ser contra aquilo cuja culpa não importa.
Viva Chile!

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Amado leitor

Não sei se é verdade, mas uma vez li em algum lugar que numa entrevista, ao ser perguntado por que é que escrevia, Gabriel Garcia Marques respondeu que escrevia para que seus amigos gostassem ou continuassem gostando dele. Se é mentira, ou se entendi errado, pouco importa, acho que é a mais humilde e sincera confissão que um escritor pode fazer. E, mesmo que a crítica literária julgue uma razão menor para escrever, essa é a minha razão também, vou na cola. Interpreto a possível fala de Garcia Marques de forma que pode parecer menor ainda: escrevo para que aqueles que eu gosto, também gostem de mim; para, quem sabe, ofertar-lhes algum outro motivo de adimiração e, assim, desesperadamente, tentar garantir o necessário afeto. Bobagem, eu sei, pois não se garante afeto. Insegurança, eu sei, pois pessoas resolvidas não mendigam afeto. Prostituição artística, eu sei, pois a arte deve ser livre. Fazer o quê? É assim no meu caso. Se o que escrevo agrada alguém outro, pode ser um bonus. Se desagrada ou é indiferente a quem eu amo, só sigo por disciplina, por teimosia, por lamento, por raiva, ou pela esperança de conseguir recobrar meu fundamental destinatário.
Foi pensando assim, sentindo assim, sendo correspondido assim que começamos esse blog anos atrás e é dessa mesma forma que eu quero continuar com ele. Se houve algum desvio no percurso, peço perdão, foi por puro desalento.