quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quem é que pode dizer?

Estava sentado bem de frente para o mar. Na mesa ao lado um casal estava jantando. As únicas frases que pronunciaram durante quase quarenta minutos foram: "esse camarão está cru" e "não está não". Eram jovens e bonitos, mas pareciam tão entediados com a vida e consigo mesmos que me entristeceram. Tive vontade de separar os dois e conferir liberdade a cada um. De decretar solenemente que estavam desobrigados um com o outro e que podiam, a partir daquele momento, recobrar suas existências, seus sorrisos e suas esperanças. De massagear urgentemente seus corações, antes que parassem definitivamente de bater. Fiquei perplexo por não se darem conta de que já não havia nada entre eles. Enquanto bebia sozinho meu Dry Martini sem esperar por ninguém naquela noite enluarada, continuei refletindo arrogantemente sobre os relacionamentos vazios cultivados pelas pessoas.
Quando o casal se levantou senti uma espécie de alívio. Eles deram alguns passos, pararam, viraram um de frente para o outro e se beijaram um beijo de cinema. Permaneceram ali abraçados e olhando para a lua por alguns minutos, depois seguiram adiante de mão dadas.
Continuei com meus martinis, mas com outros pensamentos: que chance de equívoco julgar a consistência de uma relação, olhando de fora um casal. Que certeza de equívoco tentar fazê-lo olhando de dentro.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Se é para errar, melhor um erro novo

Conheci um ex-padre que resolveu virar padre de novo. Achei tão curioso quanto acho essas histórias de homens e mulheres que casam mais de uma vez com a mesma pessoa. Não acho que seja impossível funcionar da segunda vez melhor do que funcionou da primeira, mas penso que um dos sinais da neurose é tentar obter resultados diferentes realizando os mesmos procedimentos. E desconfio bastante de mudanças significativas nos procedimentos dos indivíduos sem árduo esforço. O passar do tempo, puro e simples, não transforma ninguém, apenas envelhece e reforça os traços.
Quis saber se por traz da decisão havia algum real aprendizado. Padre Humberto garantiu que sim. Constatou que o prazer do sexo é um prazer incerto e efêmero, mas que exige sempre alto investimento; que os pecados capitais são mesmo nocivos ao indivíduo e/ou à coletividade; que a paternidade é uma fantasia, mas a maternidade é real; que sem farda, capital ou título ninguém se faz ouvir, e que sem fé é triste viver.
Achei tudo bastante convincente e já estava pronto à abençoar sua sapiente decisão. Mas quando falou também de uma certa saudadezinha das missas das seis no domingo, recobrei logo o meu juizo. Afinal, quando queremos outra coisa, queremos só pelo fascínio quanto ao que não temos? Ou queremos outra coisa porque já não suportamos mais o que temos? Se era tão boa a missa das seis, por que deixar a batina? Não teria o padre Humberto deixado de aprender que junto com as missas de domingo vinha uma porção de outras coisas que o asfixiaram? É certo que desejamos sempre o que nos falta e que, aquilo que abandonamos, pode nos faltar de novo. Mas e as razões do abandono, especialmente aquelas que não tinham a ver com o que faltava, mas sim com o que se tinha de fato? Negamos isso? Acreditamos que tudo isso mudou só porque estivemos longe enquanto o tempo passou?
Talvez o padre Humberto logo sinta falta daquilo que está abandonando agora para retomar o que tinha abandonado antes. Se é assim, não seria pelo menos mais divertido tentar um erro novo?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A viagem do Finado Palhação



Tenho um amigo, muito maconheiro, que de vez em quando aparece com umas viagens bem interessantes. Uma madrugada dessas ligou querendo encontrar, de qualquer jeito, para falar de uma suspeita muito séria a respeito de sua própria existência, senti que estava angustiado. Recebi então o Palhação por saber que às vezes ele precisa mesmo de algum contato com a realidade, mesmo que não goste muito dela. Recebi, também, porque mesmo eu não tendo também muito compromisso com essa tal, costumo dormir muito tarde e gosto do Palhação.
Abriu a cerveja e foi logo dizendo o seguinte: "cara juro para você, no começo eu achei que isso era viagem, mas agora tenho quase certeza que não é, faz dezesseis dias e quatro horas que eu morri".
Acho que só não cuspi o rum, porque estou começando a me acostumar, no consultório, com isso de ouvir as coisas mais arrepiantes, fazendo cara de que é normal. O curioso é que, quase sempre, minha reação com as histórias do Palhação é, obviamente, o riso. Mas dessa vez não, fiquei com medo. Pensei se ele tinha mudado de droga, ou se finalmente estava psicótico. Enfim, o negócio me bateu mal.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, prosseguiu: "calma... antes de perguntar se eu estou tomando muito ácido, ou de pensar em ajudar minha mãe a me enternar, ouve isso. Bom... você sabe exatamente o que me aconteceu naquele dia... poder ser bobagem para os outros... mas você sabe que para mim foi definitivo e sabe como eu fiquei. Então, o fato é que, de lá para cá, eu virei um fantasma. É sério, não é metáfora! Meu celular nunca mais tocou e meus amigos não me atendem; não recebi nenhuma carta; meus pais e minha irmã não ouviram nenhuma palavra do que eu falei; andei pela cidade inteira como alma penada, ninguém me viu; onde faltei não me esperavam; não tenho memória de nenhum outro corpo tocando o meu; não provoquei qualquer riso, ou qualquer lágrima, não provoquei nada em ninguém; também não senti nenhuma dor e nenhum prazer; ninguém me deu passagem, ou pediu-me licença; onde estive não ficou registro; respiro e não sinto o ar entrando pelo meu nariz; ninguém veio falar comigo no Face e, no meu e-mail, só tem spam; ok, continuei trabalhando, mas isso é o que é, ali ninguém existe, mesmo que seja descontado quando não está... E desde aquele dia nenhuma droga me chegou, nenhuma... Ou seja, não é viagem, eu estou morto mesmo!".
Não lembro se o Palhação seguiu falando ou não, e nem como ele foi embora ou se esteve de fato aqui. Só sei que, de minha parte, segui pensando que ele tinha razão, por tudo que entendi, estava morto mesmo, eu não tinha como negar. Cheguei a chorar por morte tão besta, mas ri sem culpa também, com a idéia palhaça de acender uma "vela" em sua homenagem.
O sábio Palhação acha agora que está morto, eu também acho, só não sei se mais ou menos do que a maioria de nós e do que eu mesmo. Não sei se está mais morto ou menos morto do que todos os que vivemos existências parecidas com a dele nos seus últimos dezesseis dias e quatro horas. Mas pelo menos o finado Palhação sabe por que é que morreu.



sábado, 13 de agosto de 2011

Sístole e Diástole

Tem hora que é de expandir e hora que é de retrair. Ou seja, momento de ligar e momento de esperar a ligação; de ser idulgente e de ouvir o pedido de perdão; de ir e de esperar; de visitar e de ser visitado; de motorista e de passageiro; de explicar e de entender; de mágico e de hipinotizado; de chef e de glutão; de quem tem filho e de quem tem pais; de dominante e de ressessivo; de gastar e de economizar; de propor e de decidir; de ofertar e de agradecer; de soltar e de reter; de estar certo e de ser convencido; de rodar o mundo e de cuidar das plantas; de falar e de, apenas...  pensar (quem sabe, escrever).
O problema é que solemos ter perfis mais marcados por uma das duas características: mais expansivos, ou mais retraídos. Sendo nada científico, diría que erramos, assim, em metade dos testes que a vida nos aplica diariamente. Ficamos na média, enfim. Alguns, porém, os mais fracos e os mais orgulhosos acabam repetindo nos dias. Teimando ou lamentando sempre que reacordam. Não importa se nasceu um dia bonito, ou não.
Já pensou se conseguíssemos sair do nosso auto-conferido perfil, para respondermos espontaneamente ao que a vida nos interroga apenas naquele momento?
Sendo agora, nem científico e nem muito poético, acabariam até as brigas de trânsito! O que quero dizer com a metáfora é simples: ninguém briga no trânsito por aquela injustiça sofrida, briga por todas as outras das quais acha que foi vítima ao longo da vida. Se de fato não foram demais, esse sujeito só pode mesmo ter um perfil expansivo. Ele parte logo para a briga! Tudo bem, a briga pode até não acontecer, se o outro, por qualquer razão, estiver exatamente no registro certo. Mas o risco é grande. Seria menor se todos buscassem o registro certo para a hora dada.
Tem hora de agir e hora de não; hora de viver e hora de morrer, e assim, quem sabe, seguir vivendo.
Para saber as horas certas de expandir e retrair, se eu fosse um sábio chinês, diria: "apenas dê ouvido ao seu coração, mas procure ouvi-lo com o coração".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Presentes da vida

Encontrei uma amiga que não via há 15 anos. Num café, me contou que casou, descasou, foi embora para Dublin, trabalhou em call center, virou puta, casou de novo, teve problemas com as drogas e com a polícia (não tem mais com a polícia), perdeu um filho, dirigiu metrô na Suécia e ganhou prêmio de barista em Nápoles. Enfim uma vida muito parecida com a minha nos últimos 15 anos. Não falo do enredo em sí, mas das descontinuidades, infortúnios e alegrias que a vida também me conferiu.
Lembrou com carinho de um livro que lhe dei de presente, uma vez, sem motivação reconhecida. Na verdade lembrou mais da dedicatória. Eu jamais lembraria: "... fique com ele. Te dou justamente por que me é querido". Disse que isso ressoou sempre, não em sua memória distante, mas em seu dia-a-dia. A questão é que quando dei o livro, ela me disse: "... mas você gosta tanto dele... vai me dar?".
Enfim... esse encontro me fez pensar, principalmente, duas coisas. A primeira é que não deveria causar espanto presentear com aquilo que se gosta. Acho que só assim se presenteia de verdade. Que significado verdadeiro pode ter para o outro, uma oferta que não significa nada para quem ofertou? (ok, sempre será possível atribuir um significado qualquer). Mas isso é como dar o que não é seu. A segunda é que, realmente, nada que fazemos ou dizemos fica impune. Amanhã, depois, ou em 15 anos, alguém sempre pode te mostrar algo que você fez ou disse e que gerou consequências. Ninguém sabe o impacto no outro da própria existencia. Ou seja, as histórias da nossa vida só terminam, mesmo, quando termina nossa vida, se é que terminam. De repente tudo começa de novo, por mais improvável que isso nos parecesse.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Pedalando na subida


No mês passado, na sala de uma suntuosa biblioteca pública, um velho mestre literato palestrava pausadamente para uma pequena plateia devotada. Defendeu num dado momento que as coisas seguem sempre seu movimento natural, mesmo quando paramos de agir sobre elas. O assunto tinha a ver com sua tese de que o escritor tem que aprender a ficar calado quando escreve, pois uma boa história sabe exatamente o que quer de quem segura o lápis, qualquer intromissão além do estritamente solicitado estraga o texto.
A audiência trocava consigo mesma sorrisos de aprovação e adimirados levantares de sobrancelhas. Houve quem deixou escorrer uma ou outra lágrima pela certeza de que sorvia toda a sabedoria de um sábio moribundo. E de fato foi mesmo a última aparição pública da sumidade. Sentimos todos.
Concluiu então o raciocínio dizendo: "o sea, és como la vida misma, no le importa un carajo lo que hacemos nosotros para intentar obligarla."
Não houve tempo para aplausos, o que tornou a situação mais intimista e adequada. Logo o mediador da mesa tomou a palavra de forma também adequada e a abriu para a plateia. Enquanto se processava um teatro de inseguranças e vaidades, a voz segura e tímida de um jovem escritor tomou o ambiente: Boa noite. É mais um comentário do que uma questão... Bem... eu tinha que ter ligado para minha namorada há meia hora, não liguei porque preferi não deixar o auditório. Dessa ligação dependia o nosso encontro de hoje. Bem... ele não vai acontecer... Pois é... eu compartilharia o riso geral se não fosse quem é!... Mas, enfim, o que queria dizer é que, se ligar ou não ligar leva a encontrar ou não encontrar, o que faço ou não faço afeta diretamente a vida que eu levo. Ou não?
Bueno... és exactamente eso lo que quero dizer: descendo uma ladeira, alguém precisa pedalar una bicicleta? Mas e no plano, o na subida? Pensaran vocês. Ora... se você não pedala no plano ou na subida, você simplesmente cai. E o que mais la vida indiferente poderia reservar al comemierda que no pedala una bice en la subida?!