terça-feira, 23 de agosto de 2011

A viagem do Finado Palhação



Tenho um amigo, muito maconheiro, que de vez em quando aparece com umas viagens bem interessantes. Uma madrugada dessas ligou querendo encontrar, de qualquer jeito, para falar de uma suspeita muito séria a respeito de sua própria existência, senti que estava angustiado. Recebi então o Palhação por saber que às vezes ele precisa mesmo de algum contato com a realidade, mesmo que não goste muito dela. Recebi, também, porque mesmo eu não tendo também muito compromisso com essa tal, costumo dormir muito tarde e gosto do Palhação.
Abriu a cerveja e foi logo dizendo o seguinte: "cara juro para você, no começo eu achei que isso era viagem, mas agora tenho quase certeza que não é, faz dezesseis dias e quatro horas que eu morri".
Acho que só não cuspi o rum, porque estou começando a me acostumar, no consultório, com isso de ouvir as coisas mais arrepiantes, fazendo cara de que é normal. O curioso é que, quase sempre, minha reação com as histórias do Palhação é, obviamente, o riso. Mas dessa vez não, fiquei com medo. Pensei se ele tinha mudado de droga, ou se finalmente estava psicótico. Enfim, o negócio me bateu mal.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, prosseguiu: "calma... antes de perguntar se eu estou tomando muito ácido, ou de pensar em ajudar minha mãe a me enternar, ouve isso. Bom... você sabe exatamente o que me aconteceu naquele dia... poder ser bobagem para os outros... mas você sabe que para mim foi definitivo e sabe como eu fiquei. Então, o fato é que, de lá para cá, eu virei um fantasma. É sério, não é metáfora! Meu celular nunca mais tocou e meus amigos não me atendem; não recebi nenhuma carta; meus pais e minha irmã não ouviram nenhuma palavra do que eu falei; andei pela cidade inteira como alma penada, ninguém me viu; onde faltei não me esperavam; não tenho memória de nenhum outro corpo tocando o meu; não provoquei qualquer riso, ou qualquer lágrima, não provoquei nada em ninguém; também não senti nenhuma dor e nenhum prazer; ninguém me deu passagem, ou pediu-me licença; onde estive não ficou registro; respiro e não sinto o ar entrando pelo meu nariz; ninguém veio falar comigo no Face e, no meu e-mail, só tem spam; ok, continuei trabalhando, mas isso é o que é, ali ninguém existe, mesmo que seja descontado quando não está... E desde aquele dia nenhuma droga me chegou, nenhuma... Ou seja, não é viagem, eu estou morto mesmo!".
Não lembro se o Palhação seguiu falando ou não, e nem como ele foi embora ou se esteve de fato aqui. Só sei que, de minha parte, segui pensando que ele tinha razão, por tudo que entendi, estava morto mesmo, eu não tinha como negar. Cheguei a chorar por morte tão besta, mas ri sem culpa também, com a idéia palhaça de acender uma "vela" em sua homenagem.
O sábio Palhação acha agora que está morto, eu também acho, só não sei se mais ou menos do que a maioria de nós e do que eu mesmo. Não sei se está mais morto ou menos morto do que todos os que vivemos existências parecidas com a dele nos seus últimos dezesseis dias e quatro horas. Mas pelo menos o finado Palhação sabe por que é que morreu.



Um comentário:

Anônimo disse...

O eu só existe no outro.