quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Pronunciamento do Presidente Lula


Como milhões de brasileiros, assisti hoje ao pronunciamento do presidente Lula pela televisão. Isso me inspirou alguns comentários sobre o atual governo e sobre sua sucessão.
Declaro, antes de tudo, que faço parte daquela legião de simpatizantes do projeto petista que não sabia onde enfiar a cara nos primeiros anos do governo Lula. As denúncias de corrupção; o convívio, contemporização e acomodação com a escória da política tradicional; a forma continuísta de lidar com uma herança abominável; a aversão religiosa quanto às necessárias e esperadas rupturas; a adesão instantânea e contraditória a uma visão das mudanças sociais pela via institucional... Tudo isso, por pouco, fez com que aderisse ao purismo quase ingênuo da dissidência indignada. Não cheguei, contudo, a cogitar o desbunde rancoroso como, me parece, ocorreu com diversos companheiros que apenas aguardavam as primeiras dificuldades, para justificar o cuidado exclusivo com a família e própria vida. Optei por uma postura estóica, que não foi tão confortável quanto pode parecer. Perdi amigos por não crer como deveria e por não descrer como deveria. A simples análise objetiva da conjuntura, porém, sempre foi suficiente para me manter tão longe quanto sempre da oposição preconceituosa, tola e mesquinha. Isso jamais me custou amizades, pois não cheguei a cultivá-las.
Passado o tempo, posso hoje reiterar minha decepção com o governo Lula e com o projeto petista: seu legado é parco e tíbio em vista do que chegou a vaticinar e diante da promessa que sucitou tanto engajameto.
Olhando para frente, porém, e pensando como historiador, vejo que, como insiste em dizer o presidente Lula, "nunca nesse país" uma porção de coisas. É verdade! Os programas sociais, com sua consequente distribuição de renda, surtiram algum efeito; os indicadores econômicos bateram médias históricas; a inserção internacional do país ganhou relevância e qualidade; a autonomia nacional cresceu; o estado aumentou sua presença em setores fundamentais e o Brasil adquiriu protagonismo mundial quanto ao modelo econômico praticado.
Pensando nas eleições de 2010, então, o que vejo é uma oposição de direita quase articulada, porém sem qualquer discurso político e, uma oposição de esquerda, desarticulada, sem projeto alternativo factível, também sem discurso e quase desorientada: não há doutrina marxista que justifique o apoio do PSOl ao Partido Verde brasileiro, somente o velho, carcomido e execrável pragmatismo (Eu também lamentaria a ausência de quadros como Ivan Valente no parlamento burguês).
Sendo assim, declaro, em Dezembro de 2009, meu voto nas próximas eleições à Dilma Russef, por quem não nutro nenhuma grande sipatia.
Voltando ao pronunciamento do Lula hoje, concordo com o imperialismo moral de Obama: quer queira, quer não, "ele é o cara". Foi à tv um ano atrás, contra todos os prognósticos e, como se estivesse num estádio de São Bernardo do Campo em 79, falou ao povo do Brasil sobre como enfrentar a crise mundial. Foi entendido, voltou hoje e agradeceu. Simples assim, como acho que ainda é o Lula.
Concluo com uma sugestão ao presidente:

"querido presidente, acho que entendo suas aspirações, referências e inseguranças presidenciais e, como historiador, penso que você deveria, antes de se engajar totalmente na campanha sucessória, juntar todas as suas realizações sociais e brigar no Congresso por uma espécie de CLS como a CLT do velho Getúlio."

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nota de Falecimento

Em meu contido desespero comunico a toda humanidade o falecimento do Kamarada Moscou. Peço um minuto de silêncio, pois caiu em batalha um grande sujeito.
Faço esse comunicado tentando apenas o auto-convencimento e um pouco do meu próprio conforto que, eu sei, só virá com o passar do tempo. Nesse momento, porém, o tempo parece estacionado para sempre.
A narrativa fantástica é como uma prece sem destinatário de quem não crê, mas tem os joelhos flexionados até o chão.
Fazia dias que o pequeno exército do grande Moscou travava uma luta injusta contra inimigos implacáveis e invisíveis. Tentávamos incansavelmente proteger uma bonita praça sitiada onde pessoas e bichos não tinham grande diferença: quem era bicho falava e agia como gente e quem era gente falava e agia como bicho. Um aprendia com o outro o que outro tinha de melhor. Razão, instinto e expressão de afeto no seu estado mais puro e mais desinteressado.
Nosso efetivo era composto por soldados valentes e valorosos: no conselho de guerra a sábia e experiente Polyana; como ajudante de ordens a gata Havana, condecorada por sua lendária bravura nos campos de batalha; a pequena Leila, manteve a coesão e o ânimo da tropa e, eu mesmo, encarreguei-me das ações de guerrilha e das tentativas de sabotagem do inimigo. Contávamos ainda com amigos da resistência e com uma facção da Legião Estrangeira composta por jovens veterinários. No comando, o generalíssimo Moscou, mais consciente e resignado do que todos nós sobre as reais chances de vitória. Além da inquebrantável disposição, nossas armas eram precárias: antibióticos corrosivos ou pouco eficientes; protetores estomacais intragáveis; acupunturas protelatórias; placebos com intenção vitamínica e rações pastosas insuficientes.
Quando o covarde inimigo liderado pela dissimulada Leukemia e pelo medíocre Mycoplasma atingiu sorrateiramente a medula e o sangue do Generalíssimo ele convocou o estado maior e disse como Leônidas aos espartanos: essa noite banquetearemos com os deuses, aquele que quiser desistir que o faça sem vergonha, a batalha é perdida. Nenhum de nós deu passo a trás. Durante a mais sangrenta luta que alguém já viveu, combatemos minuto a minuto de olhos abertos e com disposição para a vitória. O generalíssimo, contudo foi abatido.
Sem mais alento, levei hoje o Moscou ao veterinário, suas forças eram exíguas. Após o medicamento emergencial faltou-lhe oxigênio. Recomendram-me sacrificá-lo, pois não resistiria à locomoção até o hospital. Em pranto consultei Polyana e concordei com ela que deveríamos tentar.
Enquanto conduzia o agonizante Generalíssimo em maca improvisada até a tenda de socorro ele me disse, arfante: "vá mais devagar, deixe-me ver o azulado do céu; falta-me o ar. Nunca deixe o ar faltar, não há batalha que possa ser vencida quando não sentimos o fresco do ar entrando por nossa narinas, não que vençamos só por isso, mas teremos mais consciência do valor da vida e do porque lutar. Deixe-me ver mais um pouco o azulado do céu, como é bonito!" Entre a tristeza e a resignação, apenas segurei a pequena pata branca do generalíssimo e disse-lhe que estávamos perto e que conseguiríamos. Ele sorriu: "como assim, conseguiremos? Eu já consegui. Lembra de quando nos conhecemos? Cheguei filhote e fui acolhido como filho; ganhei o apreço, o carinho e irmandade da Havana; minha mãe abria a janela para mim, cada vez que eu queria ir lá fora, era só miar que ela acordava; os vossos amigos e parentes me acarinharam como nunca sonhei existir carinho; comi coisas gostosas para as minhas sete vidas; dormi entre suas pernas noites e noites e vi coisas lindas que prometo não confessar; corri atrás das mais carinhosas, felpudas e coloridas bolinhas; virei referência de afeto e ternura para vocês que são tão complexos nessa coisas; ganhei a sua tão difícil amizade; vivi num lar cheio de respeito e mutua devoção e vi, como combinamos, sua linda filha nascer. O que me falta conseguir?".
Cheguei ao hospital veterinário da Avenida Pompéia com o Moscou já praticamente sem vida. Soprava sua boca como se pudesse ser deus e restituir-lhe, num sopro, a própria vida que se-lhe esvaia. Claro, não Consegui. Não conseguiram.
Peço um minuto de silêncio: morreu um grande sujeito e ele era meu amigo de verdade.

sábado, 5 de dezembro de 2009

O professor que se matou


Não vou discutir aqui as graves questões psicológicas não resolvidas que levaram o pobre a essa tão desesperançada e deselegante atitude que é atirar-se do nono andar de um prédio antigo e charmoso do bairro da Pompéia. Se não estivesse tão cheio de convites naquele sábado, estou certo de que tomaríamos juntos aquela mesma garrafa de vinho e criaríamos uma teoria qualquer ou, então, pensaríamos num projeto revolucionário que lhe daria mais alguns meses de sobrevida. Bem, aconteceria mais dia, menos dia. Para quem vive esse eterno vazio teimando em pensar a respeito, é só uma questão de tempo, uma hora sua agenda não bate com a do seu melhor amigo e você então acaba fazendo o que pensou fazer tantas vezes. Não perdôo, contudo, o descuido estético nesse caso, especialmente sendo quem era. Meu amigo, posso assegurar, conhecia a biografia de diversos personagens infelizes que souberam pôr termo a suas vidas de maneira mais bela e mais literária. Cheguei a desconfiar até de seu tão apregoado apreço pelo jovem Werther. Confesso que acompanhar os legistas causou-me mais decepção do que repulsa.
Gostaria mesmo é de falar sobre o seu lindo romance, a obra que justificaria sua existência e sobre a qual coversamos em tantas outras crises. Uma história incrível, como nunca ouvi, narrada de uma forma realmente original. Acontece que, ao vasculhar seus pertences e arquivos de computador, não encontrei uma linha sequer sobre a história do poeta que sequestrou e manteve deus no cativeiro durante 21 dias. Ouvi durante mais de quatro anos os detalhes sobre as negociações do poeta com os diversos públicos interessados em pagar o resgate: capitalistas, comunistas, filósofos, cientistas, diplomatas, juristas, médicos, companhias de seguro, padres, rabinos, bancos e ongs. Cheguei a me emocionar com um apelo do próprio diabo desesperado. Mas o maldito mentia. Nada. Ele não escreveu absolutamente nada sobre a história que poderia ter dado sentido a sua vida e a sua morte.
Reproduzo, então, simplesmente, o bilhete de despedida que encontrei sob a última taça de vinho do meu colega professor:

"Não sei quantas faltas vocês têm, fodam-se vocês, seus estágios e seus chefes, fodam-se seus pais também; minhas avaliações foram medíocres, eu fui um professor medíocre, esse sistema de ensino é medíocre e vocês menos do que isso. Desliguem os celulares. Parem de arrumar desculpas. Diretor, vá tomar no seu cu, seu bosta. Colegas, vocês precisam ler um livro urgentemente. Qual? Qualquer um! Dona Joana, fique com a Samanta, ela gosta da senhora. Net e Mastercard, desistam, eu não vou pagar! Melhor nessa vida era ter sido vigia noturno".

Lamento, mais uma vez, a perda de compostura do meu colega professor. Jamais esperaria tanta vulgaridade da parte de um sujeito tão nobre. Na minha opinião, nem a morte redimirá tamanho desalinho.