terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nota de Falecimento

Em meu contido desespero comunico a toda humanidade o falecimento do Kamarada Moscou. Peço um minuto de silêncio, pois caiu em batalha um grande sujeito.
Faço esse comunicado tentando apenas o auto-convencimento e um pouco do meu próprio conforto que, eu sei, só virá com o passar do tempo. Nesse momento, porém, o tempo parece estacionado para sempre.
A narrativa fantástica é como uma prece sem destinatário de quem não crê, mas tem os joelhos flexionados até o chão.
Fazia dias que o pequeno exército do grande Moscou travava uma luta injusta contra inimigos implacáveis e invisíveis. Tentávamos incansavelmente proteger uma bonita praça sitiada onde pessoas e bichos não tinham grande diferença: quem era bicho falava e agia como gente e quem era gente falava e agia como bicho. Um aprendia com o outro o que outro tinha de melhor. Razão, instinto e expressão de afeto no seu estado mais puro e mais desinteressado.
Nosso efetivo era composto por soldados valentes e valorosos: no conselho de guerra a sábia e experiente Polyana; como ajudante de ordens a gata Havana, condecorada por sua lendária bravura nos campos de batalha; a pequena Leila, manteve a coesão e o ânimo da tropa e, eu mesmo, encarreguei-me das ações de guerrilha e das tentativas de sabotagem do inimigo. Contávamos ainda com amigos da resistência e com uma facção da Legião Estrangeira composta por jovens veterinários. No comando, o generalíssimo Moscou, mais consciente e resignado do que todos nós sobre as reais chances de vitória. Além da inquebrantável disposição, nossas armas eram precárias: antibióticos corrosivos ou pouco eficientes; protetores estomacais intragáveis; acupunturas protelatórias; placebos com intenção vitamínica e rações pastosas insuficientes.
Quando o covarde inimigo liderado pela dissimulada Leukemia e pelo medíocre Mycoplasma atingiu sorrateiramente a medula e o sangue do Generalíssimo ele convocou o estado maior e disse como Leônidas aos espartanos: essa noite banquetearemos com os deuses, aquele que quiser desistir que o faça sem vergonha, a batalha é perdida. Nenhum de nós deu passo a trás. Durante a mais sangrenta luta que alguém já viveu, combatemos minuto a minuto de olhos abertos e com disposição para a vitória. O generalíssimo, contudo foi abatido.
Sem mais alento, levei hoje o Moscou ao veterinário, suas forças eram exíguas. Após o medicamento emergencial faltou-lhe oxigênio. Recomendram-me sacrificá-lo, pois não resistiria à locomoção até o hospital. Em pranto consultei Polyana e concordei com ela que deveríamos tentar.
Enquanto conduzia o agonizante Generalíssimo em maca improvisada até a tenda de socorro ele me disse, arfante: "vá mais devagar, deixe-me ver o azulado do céu; falta-me o ar. Nunca deixe o ar faltar, não há batalha que possa ser vencida quando não sentimos o fresco do ar entrando por nossa narinas, não que vençamos só por isso, mas teremos mais consciência do valor da vida e do porque lutar. Deixe-me ver mais um pouco o azulado do céu, como é bonito!" Entre a tristeza e a resignação, apenas segurei a pequena pata branca do generalíssimo e disse-lhe que estávamos perto e que conseguiríamos. Ele sorriu: "como assim, conseguiremos? Eu já consegui. Lembra de quando nos conhecemos? Cheguei filhote e fui acolhido como filho; ganhei o apreço, o carinho e irmandade da Havana; minha mãe abria a janela para mim, cada vez que eu queria ir lá fora, era só miar que ela acordava; os vossos amigos e parentes me acarinharam como nunca sonhei existir carinho; comi coisas gostosas para as minhas sete vidas; dormi entre suas pernas noites e noites e vi coisas lindas que prometo não confessar; corri atrás das mais carinhosas, felpudas e coloridas bolinhas; virei referência de afeto e ternura para vocês que são tão complexos nessa coisas; ganhei a sua tão difícil amizade; vivi num lar cheio de respeito e mutua devoção e vi, como combinamos, sua linda filha nascer. O que me falta conseguir?".
Cheguei ao hospital veterinário da Avenida Pompéia com o Moscou já praticamente sem vida. Soprava sua boca como se pudesse ser deus e restituir-lhe, num sopro, a própria vida que se-lhe esvaia. Claro, não Consegui. Não conseguiram.
Peço um minuto de silêncio: morreu um grande sujeito e ele era meu amigo de verdade.

7 comentários:

!Paulo disse...

Com comoção e respeito às baixas que a vida nos dá seguimos altivos e de certa forma felizes, pesarosos e injustiçados, é claro, por perder o que não nos pertencia, mas ainda sim felizes por vislumbrar atitudes semelhantes às que vivíamos quando nos sentíamos acalentados e de bem com a vida.

Maria disse...

Compaixão não seria a melhor palavra para esse momento, mas tem algo de "com", junto. Caro, seria vc alguém que conheci há mais de vinte anos? Te reconheço por algumas frases, nomes. o tempo, a vida, a morte... há condições para sobreviver alguma amizade?

Unknown disse...

Newton, só descobri o seu blog agora, depois de ler o comentário que deixou no blog do João Montanaro. Pretendo acompanhá-lo, pois aprecio muito o seu texto e as suas idéias. Ler o texto sobre o Lula, já mexeu bastante com minhas certezas e incertezas. Mas este relato sobre o tombamento do Kamarada Moscou, é absolutamente empolgante. Para celebrar tão grande amizade, apenas um grande épico. Devido por mim à querida Pafúncia, que decolou do parapeito do décimo andar, no encalço da tão almejada pomba. Meu abraço solidário a todos vocês, bravos companheiros de batalha.

crbrasil disse...

Caríssimo Amigo,

me perdoe. Apenas agora, após a leitura desta oração, é que me dei conta de grandeza de sua perda.

... fique com meu sincero e afetuoso abraço, porque Amigo de Verdade de Amigo de Verdade meu, é meu Amigo de Verdade.

jr.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...
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Unknown disse...

Em silêncio!