segunda-feira, 28 de julho de 2008

ESCRAVIDÃO: seqüestro, cárcere, tortura, degradação, deportação, negócio


TRÊS MILHÕES E MEIO DE INDIVÍDUOS. Esse é o número aproximado mais insuspeito utilizado pelos historiadores para quantificar a população de africanos deslocada forçadamente para o Brasil durante a vigência do regime de escravidão. Trata-se de um fluxo médio de mais de cem mil pessoas por ano desde o início do tráfico na regência de Dona Catarina, avó do famoso D. Sebastião, até a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel em 1888. Não há, na História, registro de fenômeno social com as mesmas características e a mesma dimensão.
Não restam dúvidas quanto à antigüidade do que se chama escravidão, a bíblia não cansa de documentar a instituição e impérios grandiosos surgiram e desapareceram alicerçados no trabalho escravo. O que causa mais espécie, porém, é que quando teve início a escravidão no Brasil, esse flagelo, há séculos, já havia desaparecido na Europa.

PRIMEIRAS ANOMALIAS DO CAPITALISMO

Seguindo a lógica dos Modos de Produção utilizada por Marx para compreender e explicar a História européia, o Escravismo sucedeu as formas tradicionais primitivas de produzir, tornando-se o primeiro dos modos organizados de produção; com o passar do tempo e independentemente dos prodígios realizados dentro desse modo, suas contradições afloraram dando origem ao Feudalismo, que, por sua vez, após dez séculos de resultados, também foi superado por um novo modo de produção nascido de suas entranhas: o Capitalismo.
Exatamente quando a Europa estava começando a operar dentro do cânon capitalista a escravização de homens e mulheres africanos foi apresentada como atividade moderna, necessária, digna e absolutamente rentável. Como pôde ser? O próprio Marx tratou do assunto como espécie de anomalia dentro do capitalismo, estudiosos mais focados aqui do Brasil, como Jacob Gorender, devido à longevidade e proficuidade da anomalia, preferiram considerá-la um modo de produção singular. De qualquer forma, parece haver consenso no fato de que a gênese da aberração era a transformação de pessoas em produto mercadoria e de altíssimo valor agregado.
Na fase inicial ou comercial do Capitalismo, o que importava era pegar um produto de um lado e levá-lo para outro vendendo-o por um preço maior do que aquele que foi pago. Para que isso funcionasse bem, as coroas européias entenderam que era bastante conveniente sair pelo mundo em busca de lugares que pudessem oferecer produtos prontos a baixos preços para ali fincar suas garras, era o colonialismo moderno nascendo. Recém descoberto, o Brasil não chegou a empolgar os capitalistas da época, justamente porque não se encontrava por aqui muita coisa pronta para ser comercializada e nem metais preciosos como na América espanhola, pelo menos não ainda. A idéia da lavoura canavieira, embora fosse boa, já que o produto tinha grande aceitação e as condições da terra favoreciam, trazia um grande inconveniente: quem se disporia a desbravar, administrar, plantar, esperar e colher para que os comerciantes finalmente pudessem vender?
Foi no cerne de impasses como esse da colonização brasileira que surgiu uma nova e nefasta oportunidade de negócio para o capitalismo mundial nascente. Para minimizar o custo da produção, já que ela não era o empreendimento mais rentável da época, nada melhor do que o trabalho compulsório. Desse modo, além de se estruturar uma grande unidade de produção de açúcar, criava-se instantânea e simultaneamente uma tremenda demanda para os capitalistas mais atualizados que quisessem fornecer o produto do momento: mão-de-obra compulsória do negro africano.

FAÇAM O QUE EU DIGO...

O negócio do tráfico foi dominado pelos portugueses até meados do século XVII, quando então os holandeses tiveram sua vez; mas durante o século XVIII, foram os ingleses os senhores dos grilhões. Cidades como Londres e Liverpool dominavam juntas mais da metade do comércio negreiro europeu nos últimos anos do Século das Luzes. Se durante o século XIX foi grande a pressão britânica pelo fim do tráfico, é bom lembrar que seu interesse no assunto data de bem antes, mas com propósitos inversos. Eduardo VI, que governou a Inglaterra entre 1547 e 1553, autorizou o comércio de africanos e, durante o reinado da grande rainha Elizabeth, a atividade realmente teve início. Em 1562 o nobre John Hawkins aprisionou 300 indivíduos em Serra Leoa e os vendeu na República Dominicana. Cabe lembrar, por mais irônico que pareça, que além de tudo, essa incursão de Hawkins pela África era também um ato explícito de pirataria, já que os portugueses detinham oficialmente, ou religiosamente, o monopólio do comércio na África. De qualquer forma esse não chegou a ser um feito de pirataria comparável a outros que a Inglaterra protagonizou e nem Hawkins chegou aos pés de seu primo, Francis Drake, em assuntos piratistas.

LAVO MINHAS MÃOS

Ao contrário da Inglaterra, a Espanha foi grande respeitadora do monopólio português no que diz respeito aos africanos e praticamente não se envolveu com esse negócio alheio e escuso. Mas para manter sua integridade com respeito aos acordos internacionais e, ao mesmo tempo, não prejudicar o urgente e necessário abastecimento de escravos para a extração de minérios em suas colônias, a coroa espanhola desenvolveu um novo conceito em “slavebusiness“: o “asiento“. Se o comércio de qualquer outro produto com as colônias hispânicas era monopólio real, abria-se exceção para o produto gente. Nesse caso o governo terceirizava a atividade e empreendedores estrangeiros podiam, assim, ganhar o seu suado pão. Claro que a coroa cobrava por isso alguma módica quantia e foi graças a essas singelas contribuições que puderam ser erguidas singelas construções como os palácios reais de Madrid e Toledo.

AS ARMAS, E OS CIFRÕES ASSINALADOS...

Portugal, contudo, foi quem inaugurou e explorou mais institucionalmente a atividade de deslocar forçadamente gigantescos contingentes de pessoas para o trabalho compulsório em colônias. Primeiro para a Ilha da Madeira, depois Porto Santo, Açores, Cabo Verde e então para as colônias espanholas da América e Brasil. Para isso foram constituídas empresas de comércio como a Companhia de Lagos criada pelo mesmo célebre idealizador da Escola de Sagres, o Infante D. Henrique, herói das navegações. Também foram edificadas fortalezas e castelos que funcionaram como entrepostos comerciais para o embarque de africanos para as colônias. Os castelos de Arguim, São Jorge da Mina e São Paulo de Luanda são apenas alguns exemplos desses lugares macabros. Antes de chegarem ali, entretanto, os prisioneiros, na sua maior parte, percorriam um longo caminho que começava nos pumbos, feiras de escambo que ocorriam nas regiões interioranas da África. Os pumbos eram freqüentados pelos próprios africanos para as trocas de excedentes e também para negócios com prisioneiros de guerra escravizados. Praticamente inacessíveis aos traficantes brancos, os mercados eram visitados pelos pombeiros, agentes locais também escravizados que atuavam a serviço das companhias de comércio para o arremate das “peças“.
Além da Companhia de Lagos, outras tantas foram formadas com os mesmos objetivos fundamentais, algumas bastante conhecidas na História do Brasil Colonial, é caso da Companhia das Índias Ocidentais, da Companhia Geral do Comércio do Brasil, a do Estado do Maranhão e das duas criadas pelo Marquês de Pombal: a do Grão Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba.

MUSSURONGO OU MANGUANGUARA?

Embora existam registros da presença de africanos no Brasil desde os tempos de Pero Capico, que provavelmente tenha sido capitão donatário entre 1516 e 1532, e Martim Afonso de Souza, fundador de São Vicente, de acordo com o historiador Maurício Goulart, autor de “Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico“, a partir de 1570 existiam entre dois e três mil escravos na colônia. Em 1590 eram em torno de dez mil. No século XVII, o Brasil recebe um fluxo de mais de quinhentos mil; cerca de um milhão e setecentos mil no século seguinte e mais um milhão e trezentos e cinqüenta mil até a metade do século XIX.
Considerar porém que recebemos durante o período da escravidão mais de três milhões e meio de africanos como um contingente homogêneo é contribuir com uma visão simplificadora e redutora da dimensão desse verdadeiro crime contra a humanidade, na medida em que, sob o rótulo de “africanos“, escamoteiam-se culturas, religiões, idiomas, estruturas sociais, idiossincrasias, sonhos, anseios e mais uma porção de outros atributos humanos. Mesmo a divisão consagrada pela historiografia em dois grandes grupos - o dos sudaneses, vindos do litoral norte africano; e o dos bantos, oriundos de sob a linha do Equador - não resolve satisfatoriamente a questão.
Para que possamos compreender minimamente o significado do período da escravidão, seu estrago, seu impacto na história da África e suas verdadeiras influências na formação do homem brasileiro será preciso reconhecer como indivíduos e agentes históricos: Jalofos, Mandingas, Yorubas ou Minas, Felupos, Fulas, Sectários de Maomet, Balantos, Biafadas, Papeis, Manjacos, Nalus, Bahusns, Ba-Congos, Djaggas, Cabindas, Mussurongos, Eschicongos, Jagas, Ban-Galas, Bambas, Hollos, Ambaquitas, Ma-Quiocos, Guissamas, Libollos, Ba-Nanos, Ba-Buenos, Bailundos, Bihenos, Mondombes, Ambruellas, Guimbandeses, Banhanecas, Ba-Ncumbis, Macuás, Manimdis, Manguanguaras, Nyanjas ou Manganjas, Mavias, Muzinhos, Moraves, Ajaus, Ba-Cancalas, Bacubaes, Ba-Corocas, Ba-Cuandos, Ba-Cassequeres, Basutos, Bechanas, Núbios...

O ESPÍRITO CIENTÍFICO DO SÉC XIX


Talvez o primeiro pesquisador a reconhecer e apontar as diferenças entre um africano de origem banto da África Centro-Ocidental e um nagô ou iorubá vindo da África Central, tenha sido Francis de Castelnau. Na primeira metade do século XIX o naturalista, que nasceu em Londres em 1810, chefiou uma expedição pela América do Sul e, em 1848, foi cônsul da França no Brasil. Na Bahia entrevistou escravos africanos e acabou publicando em Paris o resultado de suas pesquisas. Recentemente a editora José Olympio publicou no Brasil as tais “Entrevistas com Escravos Africanos na Bahia Oitocentista”.
O pequeno volume de Castelnau é um documento importante para a historiográfica do negro no Brasil, na medida em que dá voz aos próprios indivíduos e compõe fragmentos de suas biografias. Por outro lado, o mesmo documento é um testemunho loquaz do espaço que o negro africano ocupa no imaginário europeu, não apenas no que diz respeito ao homem comum, mas especialmente à comunidade científica.
Por mais incrível que possa parecer, a motivação de Castelnau para suas entrevistas na Bahia foi o levantamento, junto aos negros locais, de informações sobre a precisa localização na África dos Niam-Niams, uma suposta tribo de homens pretos que possuíam rabos. Ainda que para o próprio cientista tal existência colocasse em xeque alguns dos paradigmas da ciência da época, o empenho existiu e foi recompensado com relatos preciosos e confirmatórios da absurda teratologia. Manuel ou Mahammah em haussá, um dos entrevistados, por exemplo, assim se refere aos Niam-Niams: “(...) e poucos dias depois, percebemos um bando dos selvagens niam-niams.” Castelnau continua a narrativa “Eles dormiam ao sol; os haussás aproximaram-se sem fazer barulho e os massacraram até o último; todos eles tinham caudas de quase quarenta centímetros de comprimento e que podiam ter de dois a três centímetros de diâmetro; este órgão é liso (...).
A hipótese de trabalho do cientista, vale reforçar, data do século XIX, mais de trezentos anos após o contato regular da Europa com a África, e não da época das grandes navegações quando ainda se temia os ciclopes e a grande correnteza que arrastaria para o abismo os navios que chegassem à linha do horizonte.
Desnecessário dizer que, a despeito dos “indícios“, a ciência natural européia não chegou a se comprometer mais metodicamente com o esclarecimento do mistério.

domingo, 27 de julho de 2008

CONFLITOS MUNDIAIS: Por quem os sinos dobram?


MAIS DE 25 MILHÕES DE PESSOAS PERAMBULAM HOJE DE UM LADO PARA OUTRO DO PLANETA EM BUSCA DE REFÚGIO. A GRANDE MAIORIA FOGE DE GUERRAS.

Artigo publicado na Revista Caros Amigos em Setembro de 2008, Edição 138.

Israel simula operações militares de invasão do Irã; o Irã realiza testes com mísseis que podem atingir Israel e posições americanas na região; aumenta o preço do petróleo; os EUA reforçam seu apoio aos aliados e robustecem seu projeto de escudo anti-mísseis na Europa, o que torna os russos mais irritadiços. O crescimento da tensão faz com que analistas calculem em 50% as chances de uma guerra contra o Irã durante esse ano em que Bush ainda é senhor dos senhores das armas.
Cenários como esse costumam interessar bastante aos grandes mascates de notícias, pois o que vem na seqüência quase sempre é um espetáculo de horrores com bombardeios ao vivo, correspondentes próximos ao campo de batalha e depoimentos emocionantes daqueles que ficaram presos no aeroporto antes de poder voltar seguros para suas casas. Quando o assunto está saturado e a “notícia-commodity“ em baixa cotação, especula-se com outro tema. Mas os desdobramentos e conseqüências, independentemente das suas proporções continuam repercutindo por anos e anos sem que a grande mídia faça caso.
Exemplo disso é a informação do 2007 Global Trends publicado pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Assuntos de Refugiados) segundo a qual apenas na Síria e na Jordânia vivem hoje pelo menos 2 milhões de refugiados de guerra iraquianos. A rigor talvez o ACNUR não os considere tecnicamente como refugiados de guerra, mas quem sabe algo como desterrados result of the volatile situation in Iraq, dá no mesmo. Cada vez que se decide pelo conflito armado em qualquer lugar, inicia-se um drama humano de conseqüências, essas sim, globalizadas.
Calcula-se que existam hoje mais de 25 milhões de pessoas buscando refúgio em outros países em conseqüência de guerras, conflitos internos, perseguições políticas e fome entre outros flagelos.
Só a invasão norte-americana do Afeganistão, que nem chegou a ser tão polêmica quanto a do Iraque em função de sua irrefletida legitimidade face aos atentados de 11 de setembro, provocou a peregrinação de de mais de 3 milhões de homens, mulheres e crianças afegãos que, na sua maioria, foram encontrar abrigo no visinho Paquistão. O conflito interno no Sudão entre muçulmanos do norte e cristãos do sul fez com que 523 mil sudaneses deixassem o país em busca da reconstrução de suas vidas. Um número próximo, 457 mil, é o de somalis que fugiram das lutas religiosas de sua terra natal.
Aqui, mais proximamente, a dispeito da discussão sobre a narco-contaminação do projeto das FARCs e a postura entreguista e intransigente do governo Álvaro Uribe, o dado concreto, como diria o presidente Lula, é que a Colômbia ocupa o terceiro lugar no mundo como país exportador de refugiados: 552 mil. E, quando se fala em deslocamento interno de população, nossos compadres são atualmente os campeões mundiais com mais de 3 milhões.
Estima-se que no Brasil vivam ilegalmente hoje mais de 100.000 colombianos, que vieram em conseqüência da guerra civil que enfrentam em seu país. Almoçamos, negociamos, amamos, odiamos e temos filhos também com alguém dos, no mínimo 140 mil libaneses; 50 mil palestinos e, entre 30 e 70 mil angolanos que optaram por lidar aqui com seus dramas e traumas de guerra.
Guerra e Paz, portanto, são temas dos quais ninguém pode se dizer alheio, seja onde for. Sendo assim, independente do que a grande mídia destaca, sempre que qualquer um estiver declarando guerra, devemos nos preocupar, nos posicionar e nos fazer ouvir.
Lembro-me do impacto da descoberta quando vi o filme “Por quem os sinos dobram?“, baseado no livro de Hernest Hemingwey. A história, sobre a Guerra Civil Espanhola, começava falando da tradição de se tocar o sino nas pequenas cidades espanholas sempre que alguém morria. Quando dobravam os sinos, era inevitável a pergunta: por quem os sinos dobram? Acho que a resposta era mais ou menos assim: sempre que morre alguém, morre parte da humanidade, morre um pouco de todo mundo. Então, não me pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram sempre por ti.