terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Futuro imperfeito

No final do ano que vem liguei para ela. Ela ainda estará com ódio de mim e fingiu que não reconhecerá minha voz. Eu começarei pedindo desculpas pelo que acontece no ano passado, ela me reconheceu e disse que não será importante e que já passarou. Insisti que não passará se não conversamos a respeito. Ela retrucou que não importará e que já supera a contrariedade. E me perguntará como andou meu futuro. Não soube dizer ao certo e perguntarei também como será seu passado. Ela disse que será melhor. Quererei saber se ela ainda me amou. Ela dirá que jamais me ama e eu disse, digo e direi que a amei, amo e amarei.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Vou pro inferno

Era a terceira vez que ele tinha morrido, a primeira por acidente, a segunda de velhice e, essa, por abusar da vida. Das duas primeiras tinha ido para o inferno direto, mas dessa vez morreu decidido que tinha o direito de experimentar algo diferente (a verdade é que já vinha nessa onda nos últimos meses). Quando chegou a hora da sentença, mandaram-no para o inferno pela terceira vez. Ficou puto e protestou: Mas qual o critério, afinal?
Como assim? Disse o anjo responsável indignado (ele ainda não tinha presenciado nenhum desses questionamentos comuns há séculos). Rapidamente apareceu um santo de barba grisalha que cochichou ao anjo novato para que saisse da área.
Ninguém conhece as razões de deus, meu filho! Tentou convencer o santo veterano.
Mas que catzo de julgamento é esse então, se ninguém sabe a regra? Dá primeira vez, tudo bem, vacilei mesmo. Achei que era por isso. Da segunda, não entendi, fiz tudo direitinho e acabei morrendo deitado no meu próprio mijo. Acatei. Mas e agora?
A insistência fez com que surgissem dois santos mais famosos, o outro sumiu numa espécie de fumaça ninja.
O bonzinho foi dizendo: eu sei que é difícil, meu filho, mas assim está escrito... O outro chegou enquadrando: baixa a bola que já passou muito rockeiro, escritor, filósofo e puta por aqui com esse mesmo discursinho! Inferno! Meu velho! Pronto e acabou!
Peraí, não põe a mão em mim! Eu sou cidadão e só estou querendo saber qual é o critério. Onde é que está escrito?
Um coral de anjos interrompeu a discussão. Não veio deus, mas veio o seu predileto. Tentou ganhar na base do carisma e da performance.
Você abusou da vida, meu filho!
Tá bom, é verdade, dessa vez abusei mesmo. Mas e das outras? E você? Vai me dizer que andar em cima da água não é coisa de maluco? E agora você taí, não tá? Qual o critério, então?
Sim, mas... mas... tudo bem, meu filho, passa, então pro lado de cá.
Assim? Nem fudendo! Vou pro inferno!





domingo, 20 de novembro de 2011

Santa Paciência

Quando era criança sabia o dia e a hora certa da série de televisão que gostava e esperava por ela ansioso. Não importa qual era, não é disso que se trata. Talvez fosse " Cyborg: O Homem de Seis Milhões de Dólares", "Ultamen", ou qualquer outra bobagem como as que existem hoje.
Com outras coisas era parecido: refrigerante no fim de semana; a mulher do yakut que passava na porta de casa exatamente ao meio dia; brinquedos no aniversário e no natal; tênis e roupas novas só quando meus pais podiam e achavam necessário; viagens nas férias; compras de supermercado, uma vez por mês...
Quando adolescente, também era assim. Namorava um disco por meses e, enquanto isso, me satisfazia esperando tocar no rádio uma das músicas queridas para gravar em fita cassete, me esmerando para pausar antes do locutor falar qualquer coisa. Uma volta de fusca no quarteirão, na hora de manobrar o carro durante a farsante lavagem de sábado. Dias e dias esperando, pelo correio, uma resposta de uma nova amiga da praia, cuja amizade povoava meus sonhos de cada noite. Ir ao cinema com amigos e tomar lanche depois era um evento que exigia planejamento e economias. A insegurança de uma namorada para qualquer ousadia era uma espera conjunta e sagrada.
Logo fui trabalhar e, como no trabalho ninguém esperava muito pelas coisas, comecei a perder a paciência também. Passei a saber esperar apenas as duas coisas que te ensinam a esperar: a hora de ir embora e o dia do pagamento. Todo o resto comecei a querer agora.
Enquanto isso, o mundo acelerou e hoje parece que a lógica que aprendi trabalhando é a mesma lógica das crianças, dos adolescentes, dos adultos, dos artistas e dos poetas.
Não sei como vai ser para quem já nasceu num mundo impaciente, onde se baixa na hora todos os episódios da série e um minuto num chat parece uma eternidade. Não digo que antes era melhor. Mas sinto que para desfrutar as melhores coisas que a vida oferece: uma criança crescer, um botão de rosa abrir, o baixar da maré, um pássaro construir seu ninho, o sol terminar de se pôr, um amor verdadeiro ser reconhecido... é preciso ter paciência.

domingo, 30 de outubro de 2011

A vantagem do homem que vem do futuro

Desde criança, ele ouvia que estava a frente do seu tempo. Seus pequenos prodígios encantavam os mais velhos e ele aprendeu a gostar disso; nem lembrava de apenas brincar. Quando era jovem passou a acreditar que a vida lhe seria mais fácil, então. Lidava, mesmo, muito melhor com as demandas de responsabilidade e postura que costumam atormentar os adolescentes e obteve destaque; nem se dava conta de que era seu tempo de revoltar e errar. Um pouco mais velho colheu um ou outro fruto com sua condição; venceu disputas, ganhou algum dinheiro e um pouco de fama; não cogitava as concessões que a vida adulta exige. Mas a vida foi passando e ele foi percebendo que, aquilo que chegou a parecer um super-poder, não trazia-lhe benefício algum naquilo que mais importava: ser amado por quem amava. Ao contrário, cobrava o que, sequer, estava pactuado; via problemas não enunciados; respondia perguntas que só seriam perguntadas depois; denunciava crimes ainda não cometidos; ofendia-se com aquilo que ninguém chegou a dizer; ia embora antes de ser realmente expulso; protegia-se do abandono quando ainda era querido. Compreendeu, assim, sua maldição.
Já adulto, solitário, confuso e inconformado com seu destino que era para ser brilhante, ele foi a uma cartomante:

O Mago quer dizer que, de alguma forma, você está a frente do seu tempo.

Ouço isso desde criança! Porque será que estou sozinho então? Não era para eu ter alguma vantagem!?

Vantagem? Que tipo de vantagem?

Sei lá!... Não era para... pelo menos... eu conseguir antecipar os passos dos demais?

"Antecipar os passos dos demais"?... Isso parece uma ideia bem limitada para quem vem do futuro, não? Só porque "você", vem do futuro, os "demais" "tem" que "te" levar em conta, mesmo que você não tenha criado vínculos com eles?

Nunca tinha pensado assim... mas...

O outro sempre terá o direito de ser ele mesmo, não importa quem, ou de que tempo, seja você. Mas, ainda assim.. de que futuro viria quem viesse do futuro?

Como assim?

"Você está a frente do seu tempo", confirma o Mago. Mas quanto? 10, 50 anos? Ou apenas 3 meses e cinco dias?

Como saber?

Senão você, ninguém mais. Então... não sei se é vantagem.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Comunhão Parcial de Bens

Já tinha passado muito tempo quando se encontraram de novo: anos, décadas, vidas inteiras, dias completos. Mas continuavam parecidos. Ambos tinham cicatrizes, filhos, hipotecas, tentativas frustradas e acompanhada solidão. Ambos tinham também contas a acertar um com o outro, mas nisso havia uma diferença: ele sabia e admitia, ela também sabia, mas achava que não. Foi ele quem a procurou numa rede social, deixou a primeira tímida mensagem, convidou-a para um café e falou primeiro: te chamei para esse café para te dizer que está na hora de nos separarmos.
Você continua um brincalhão! Não nos vemos desde que você apareceu com sua namoradinha cineasta na minha vernissagem. Afinal, não deu certo com ela? Muito jovem?
Deu certo sim, ainda estamos juntos e temos uma filha, como você e seu escritor velho demais. Mas não é disso que se trata. Estou falando de nós dois. Quero de volta o que é meu e está contigo.
Nina Simone? Aldo Bonadei? Em Busca do Tempo Perdido? Muitas vezes quis te enviar por Fedex, mas não sabia seu endereço.
Você também continua uma brincalhona! Não quero o que te deixei, quero o que você tomou de mim.
Você continua indecifrável! Está falando de amigos, lugares, valores, referências? Ora, isso eu não tomei, simplesmente tornou-se meu também.
Não, não, claro que não! Isso tornou-se seu, como tornou-se meu em algum momento igual. Falo do que era meu e só meu, mas você tomou de mim.
Vamos lá então! Estou disposta a te entregar de volta tudo que era teu e roubei sem me dar conta.
Está?
Estou. Desde que você não reivindique aquilo que, na verdade, acho que é meu por direito.
Você também continua indecifrável! Tá bem... será que você é capaz de me devolver a possibilidade de amar alguém como eu nunca deixei de amar você?
Você continua um pragmático escroto! Nos vemos no tribunal!
Casa comigo de novo, então.
Claro que não. Você é louco? Nos vemos no tribunal! Está aqui a minha parte da conta!
Espera... espera... Ladra maldita!... Devolva o que é meu!... Casa... comigo...outra...vez... então...

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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Quando não dá para voltar

De tanto arrependimento, o sujeito enlouqueceu e acabou tornando-se um andarilho. Sendo assim, ganhou outra sanidade e virou sábio também. Sentiu na pele a natureza e seus elementos. Compreendeu que a ciência, o pensamento e a lógica são parte e não o todo. Reconheceu a diferença entre o que precisa e o que deseja. Percebeu seu verdadeiro tamanho diante das grandes coisas. Misturou-se com a paisagem e não sabia mais o que era ele e o que era o mundo. Só do arrependimento não aprendia como se livrar.
Numa noite fria, deitado com sua garrafa de conhaque na beira de uma estrada, evocando sabe-se lá que poderes, conseguiu voltar ao momento em que agiu errado. Pensava simplesmente reparar o erro e, assim, corrigir a trajetória. Mas, quando retrocedeu no tempo, foi consigo mesmo que se deparou, justamente no momento em que o eu antigo estava prestes a cometer o erro. Ambos se reconheceram.
Não, não faça isso, pense melhor.
Já pensei. É isso o que eu tenho que fazer.
Isso vai tornar sua vida um inferno.
Essa tristeza é o inferno.
Não é.
É.
Vai ser pior.
Não pode.
Eu sei o que digo.
Você não pode saber mais do que eu.
Posso, porque eu sou você depois disso.
Mas eu sou você antes de você ser.
Então aprenda com quem você está prestes a se tornar.
Só posso aprender com você se você for e você só será se eu fizer o que tenho que fazer agora. Logo, se não fizer, você não existirá e essa conversa será apenas um balanço de consequências comigo mesmo.
É verdade. Só posso, então, mesmo, lamentar minhas certezas de outrora. E agradecer a você minha parca existência.

domingo, 16 de outubro de 2011

Sobre a Solidão

Uma bela, conhecida e talentosa atriz de cinema, que quando mais jovem era repórter de uma extinta revista cultural francesa, foi certa vez incumbida de fazer uma matéria sobre a solidão. Na época eu mesmo havia obtido grande sucesso com meu segundo livro Lonely orgasm - with or without someone. Concordei em recebê-la para uma entrevista. Ainda vivia na Flórida e apenas ensaiava minha ruptura com o mundo acadêmico e com as rodas intelectuais.
Quando chegou, não me pareceu francesa, nem tampouco americana, diria que era latina. Soube logo que era um pouco dos três: pais franceses, noivo brasileiro e os últimos anos em San Franciso. Sua beleza, contudo, como se sabe, era clássica e universal.
Convidei-a para a varanda e logo Dolores serviu-nos dois daiquiris. Dolores sempre decidia o que servir com base no brilho do meu olhar e em função da luminosidade do dia... ou da noite. Jamais se enganava.
Teria ela vinte, vinte poucos anos e foi meu saudoso mastif, Gandolf, quem descobriu isso primeiro roubando logo seus afagos e revelendo suas meninices. Mas tinha já esse porte de mulher total, suficiente para o que se imaginar. Aliás, recentemente algum crítico tentou dizer algo parecido com isso por ocasião do Oscar de atriz coadjuvante que ela não recebeu.
Quando começou a falar, notei um leve tremor nos seus lábios que imaginei insegurança, depois percebi que não era. Na verdade percebi que era a insegurança dos meus próprios olhos titubeantes querendo fixar-se nos lábios dela.
Disse que já havia entrevistado um condenado à pena de morte; um presidente latinoamericano, uma viúva desconhecida; um monge do Tibet, um balonista canadense, uma poeta chinesa e um físico nuclear do Leste Europeu. Sempre com a pergunta: o que é a solidão? Segundo me disse, eu era o último e o único de quem esperava abordagem mais técnica.
Quis saber um pouco sobre o que disseram ous outros. A síntese de sua saga pela resposta foi: saber que a morte está tão perto e não ter com quem compartilhar o desespero; não ter em quem confiar; saber que ele nunca mais entrará por essa porta; condição necessária para saber de si; o silêncio do mundo; perder todos os medos, e nada que as nossas certezas não façam suportar.
Ao narrar-me o que ouviu, não o fez da forma resumida como apresento aqui. Ao contrário, anoiteceu e nos embreagamos enquanto ela descrevia as circunstâncias, os históricos e as sabedorias de cada um dos seus entrevistados respectivamente. Também rimos, trocamos impressões, quase confidências, tocamos as mãos um do outro e quase dançamos também. Pouco falei até então sobre solidão, ao menos me parece assim.
Completamente fascindo com a conversa, com a brisa da noite e com ela toda, preenchi, sem querer, uma rara pausa de silêncio, perguntando se nunca lhe ocorreu entrevistar um apaixonado antes de falar comigo.
"Como assim um apaixonado?"
"Sim, um apaixonado. É que talvez não haja quem saiba mais de solidão do que um apaixonado antes do primeiro beijo".


domingo, 25 de setembro de 2011

O homem que distribuia flores

Em uma vida passada, estava eu fazendo uma pesquisa, por conta própria, sobre os epitáfios em túmulos de suicidas. Tinha muita curiosidade em saber o que é que ficava registrado. Partia do princípio de que, nesses casos, era maior a chance de que o texto fosse mesmo de autoria do morto. Sempre acreditei que os suicidas eram os verdadeiros estetas da morte, os únicos - além de coveiros, etc - que tratavam do assunto com a objetividade que permite pensar em detalhes fundamentais. Percebi, no fim, que também nesse caso, as coisas são mais complicadas do que parecem. Minha pesquisa durou toda a vida. Vi em Pequim o túmulo de um jovem que matou-se aos 22 anos e, em sua lápide, só havia o número de registro civil e a palavra óbito em chinês com uma data. É certo que ele tinha algo mais à dizer. Em Recife uma senhora, que só se suicidou aos 72 anos, tinha no seu epitáfio: "Mãezinha doce, adoce agora a vida dos anjos". Desconfiei de que não eram delas aquelas palavras. No cemitério da Consolação tinha um mausoléu de uma moça que enforcou-se com 17 anos no final do século XIX. Estava escrito: "... sendo assim, por tudo que não posso nessa vida, posso ao menos pedir a deus que me deixe desfrutar a eternidade entre seus braços". Achei aquilo bem autoral, mas não tive dúvidas de que alguém editou a última carta naquilo que era mais importante. Na vila espanhola de Peñalba encontrei o que me pareceu o epitáfio perfeito de um bom suicida: "me voy sencillamente porque ya no puedo quedarme". Só que Ramirez não se matou, morreu de velho e deixou a frase em um concorrido testamento.
Enfim... por todos esses descaminhos, minha pesquisa ao longo daquela vida foi se tornando infértil. Mesmo assim, não desistia. Mas em Rapallo, na Itália, num pequeno cemitério que visitei todos os dias durante um mês, uma linda história me fez lentamente mudar de foco. E a história meu deu outra vida para continuar pesquisando.
Dia após dia copiando frases no cemitério de Rapallo, notava duas coisas: primeiro, que naquele lugar todas as lápides falavam demais sem dizer muito; segundo, que havia um túmulo sem lápide, na rua B sobre o qual sempre havia uma rosa vermelha que parecia recém colhida e, em torno, um delicioso perfume de flôr que não parecia de cemitério.
A primeira constatação foi me tornando disperso e, a segunda, cada vez mais atento. Quis afinal confessar para alguém aquela impressão inquietante e, quem sabe, obter algum conforto. Acabei conversando com um vigia.
Soube, então, que tratava-se do túmulo do Fiori Nicolla e que, cada rosa que eu vira sobre ele, era mesmo uma rosa recém colhida. Mesmo se passasse por ali de hora em hora, assim seria.
Ninguém na cidade sabe quase nada sobre Fiori Nicolla. Só se sabe que era louco e que passou os últimos 30 anos distribuindo rosas a mulheres e homens, jovens e velhos, capitalistas e socialistas, locais e estrangeiros. O vigia não imagina quantas rosas distribuiu, mas hoje, pelo menos a cada hora, alguém deposita uma nova rosa sobre a sua tumba.
Perguntei como morreu o senhor Nicolla e o que acontece com com as flores velhas. Disse que dizem que um espinho infeccionou em seu polegar e ele não resistiu.
Sobre o que acontece com as flores velhas do túmulo de Fiori Nicolla, o vigia não soube dizer.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Sobre presença e ausência

Tem coisas que são tão óbvias que eu não sei por que é que leva tanto tempo para a ficha cair. A sorte é que, com sorte, um dia ela cai e pode ser da maneira mais inusitada. Numa noite dessas uma linda garçonete conferiu-me esse privilégio tão necessário. Cheguei primeiro e queria uma mesa para três - na verdade achava que seria para dois. Já encostado no balcão, ela pediu meu nome e, muito sincera, me disse que se empenharia em conseguir a mesa. Tive certeza de que, por alguma razão, ia mesmo. Acontece que, depois de algum tempo e algo impaciente, abandonei o meu posto e fui até a porta. Voltei depois ao balcão, já com a minha companhia. O bar estava mais cheio e percebi que a disputa por mesas havia se acirrado. Segurei Fabiana pelo braço na primeira oportunidade e interroguei com o olhar sobre a mesa prometida. Sem que ela retirasse o sorriso profissional, senti que me passou uma descompostura. Disse que minutos antes havia uma mesa, mas que eu não estava mais. Pensou que eu tinha desistido. Senti que deu-me outra chance, mas enquanto isso havia me dado era uma bela porrada. Ficou na minha cabeça o eco de sua voz: "não estava mais... desistido".
A ficha caiu: quando queremos alguma coisa de alguém, temos que nos fazer presentes. Quando não mostramos que estamos, é mais certo os outros não pensarem em nós, ou pensarem que desistimos, mesmo que não tenhamos. Não é óbvio?
Desculpas e justificativas pela nossa ausência podem ter lá os seus encantamentos,  mas é só na nossa presença que a nossa vida relamente acontece. Quem não se fizer presente no que quer viver, não vai viver. É assim, me revelou uma linda garçonete.
Nos sentamos finalmente... e a vida seguiu entre os presentes.

sábado, 3 de setembro de 2011

O caracol e o zangão?!

Numa descontraída e intelectual conversa no jardim, perguntou um caracol para um zangão: o que é longe e o que é perto para você?
Caraca! Sei não - zuniu lentamente o zangão - acho que longe é sempre a abelha... e perto é tudo aquilo do que eu tenho que desviar para chegar até a abelha. E para você? - quis saber o zangão.
Respondeu veloz o caracol: longe é a luz do sol e perto é a sombra de mim mesmo, que sempre me acompanha.
Após um breve silêncio, interrompeu a mariposa: ei, vocês vão se explicar, ou essa conversa vai terminar assim tão filosófica?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Quem é que pode dizer?

Estava sentado bem de frente para o mar. Na mesa ao lado um casal estava jantando. As únicas frases que pronunciaram durante quase quarenta minutos foram: "esse camarão está cru" e "não está não". Eram jovens e bonitos, mas pareciam tão entediados com a vida e consigo mesmos que me entristeceram. Tive vontade de separar os dois e conferir liberdade a cada um. De decretar solenemente que estavam desobrigados um com o outro e que podiam, a partir daquele momento, recobrar suas existências, seus sorrisos e suas esperanças. De massagear urgentemente seus corações, antes que parassem definitivamente de bater. Fiquei perplexo por não se darem conta de que já não havia nada entre eles. Enquanto bebia sozinho meu Dry Martini sem esperar por ninguém naquela noite enluarada, continuei refletindo arrogantemente sobre os relacionamentos vazios cultivados pelas pessoas.
Quando o casal se levantou senti uma espécie de alívio. Eles deram alguns passos, pararam, viraram um de frente para o outro e se beijaram um beijo de cinema. Permaneceram ali abraçados e olhando para a lua por alguns minutos, depois seguiram adiante de mão dadas.
Continuei com meus martinis, mas com outros pensamentos: que chance de equívoco julgar a consistência de uma relação, olhando de fora um casal. Que certeza de equívoco tentar fazê-lo olhando de dentro.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Se é para errar, melhor um erro novo

Conheci um ex-padre que resolveu virar padre de novo. Achei tão curioso quanto acho essas histórias de homens e mulheres que casam mais de uma vez com a mesma pessoa. Não acho que seja impossível funcionar da segunda vez melhor do que funcionou da primeira, mas penso que um dos sinais da neurose é tentar obter resultados diferentes realizando os mesmos procedimentos. E desconfio bastante de mudanças significativas nos procedimentos dos indivíduos sem árduo esforço. O passar do tempo, puro e simples, não transforma ninguém, apenas envelhece e reforça os traços.
Quis saber se por traz da decisão havia algum real aprendizado. Padre Humberto garantiu que sim. Constatou que o prazer do sexo é um prazer incerto e efêmero, mas que exige sempre alto investimento; que os pecados capitais são mesmo nocivos ao indivíduo e/ou à coletividade; que a paternidade é uma fantasia, mas a maternidade é real; que sem farda, capital ou título ninguém se faz ouvir, e que sem fé é triste viver.
Achei tudo bastante convincente e já estava pronto à abençoar sua sapiente decisão. Mas quando falou também de uma certa saudadezinha das missas das seis no domingo, recobrei logo o meu juizo. Afinal, quando queremos outra coisa, queremos só pelo fascínio quanto ao que não temos? Ou queremos outra coisa porque já não suportamos mais o que temos? Se era tão boa a missa das seis, por que deixar a batina? Não teria o padre Humberto deixado de aprender que junto com as missas de domingo vinha uma porção de outras coisas que o asfixiaram? É certo que desejamos sempre o que nos falta e que, aquilo que abandonamos, pode nos faltar de novo. Mas e as razões do abandono, especialmente aquelas que não tinham a ver com o que faltava, mas sim com o que se tinha de fato? Negamos isso? Acreditamos que tudo isso mudou só porque estivemos longe enquanto o tempo passou?
Talvez o padre Humberto logo sinta falta daquilo que está abandonando agora para retomar o que tinha abandonado antes. Se é assim, não seria pelo menos mais divertido tentar um erro novo?

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A viagem do Finado Palhação



Tenho um amigo, muito maconheiro, que de vez em quando aparece com umas viagens bem interessantes. Uma madrugada dessas ligou querendo encontrar, de qualquer jeito, para falar de uma suspeita muito séria a respeito de sua própria existência, senti que estava angustiado. Recebi então o Palhação por saber que às vezes ele precisa mesmo de algum contato com a realidade, mesmo que não goste muito dela. Recebi, também, porque mesmo eu não tendo também muito compromisso com essa tal, costumo dormir muito tarde e gosto do Palhação.
Abriu a cerveja e foi logo dizendo o seguinte: "cara juro para você, no começo eu achei que isso era viagem, mas agora tenho quase certeza que não é, faz dezesseis dias e quatro horas que eu morri".
Acho que só não cuspi o rum, porque estou começando a me acostumar, no consultório, com isso de ouvir as coisas mais arrepiantes, fazendo cara de que é normal. O curioso é que, quase sempre, minha reação com as histórias do Palhação é, obviamente, o riso. Mas dessa vez não, fiquei com medo. Pensei se ele tinha mudado de droga, ou se finalmente estava psicótico. Enfim, o negócio me bateu mal.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, prosseguiu: "calma... antes de perguntar se eu estou tomando muito ácido, ou de pensar em ajudar minha mãe a me enternar, ouve isso. Bom... você sabe exatamente o que me aconteceu naquele dia... poder ser bobagem para os outros... mas você sabe que para mim foi definitivo e sabe como eu fiquei. Então, o fato é que, de lá para cá, eu virei um fantasma. É sério, não é metáfora! Meu celular nunca mais tocou e meus amigos não me atendem; não recebi nenhuma carta; meus pais e minha irmã não ouviram nenhuma palavra do que eu falei; andei pela cidade inteira como alma penada, ninguém me viu; onde faltei não me esperavam; não tenho memória de nenhum outro corpo tocando o meu; não provoquei qualquer riso, ou qualquer lágrima, não provoquei nada em ninguém; também não senti nenhuma dor e nenhum prazer; ninguém me deu passagem, ou pediu-me licença; onde estive não ficou registro; respiro e não sinto o ar entrando pelo meu nariz; ninguém veio falar comigo no Face e, no meu e-mail, só tem spam; ok, continuei trabalhando, mas isso é o que é, ali ninguém existe, mesmo que seja descontado quando não está... E desde aquele dia nenhuma droga me chegou, nenhuma... Ou seja, não é viagem, eu estou morto mesmo!".
Não lembro se o Palhação seguiu falando ou não, e nem como ele foi embora ou se esteve de fato aqui. Só sei que, de minha parte, segui pensando que ele tinha razão, por tudo que entendi, estava morto mesmo, eu não tinha como negar. Cheguei a chorar por morte tão besta, mas ri sem culpa também, com a idéia palhaça de acender uma "vela" em sua homenagem.
O sábio Palhação acha agora que está morto, eu também acho, só não sei se mais ou menos do que a maioria de nós e do que eu mesmo. Não sei se está mais morto ou menos morto do que todos os que vivemos existências parecidas com a dele nos seus últimos dezesseis dias e quatro horas. Mas pelo menos o finado Palhação sabe por que é que morreu.



sábado, 13 de agosto de 2011

Sístole e Diástole

Tem hora que é de expandir e hora que é de retrair. Ou seja, momento de ligar e momento de esperar a ligação; de ser idulgente e de ouvir o pedido de perdão; de ir e de esperar; de visitar e de ser visitado; de motorista e de passageiro; de explicar e de entender; de mágico e de hipinotizado; de chef e de glutão; de quem tem filho e de quem tem pais; de dominante e de ressessivo; de gastar e de economizar; de propor e de decidir; de ofertar e de agradecer; de soltar e de reter; de estar certo e de ser convencido; de rodar o mundo e de cuidar das plantas; de falar e de, apenas...  pensar (quem sabe, escrever).
O problema é que solemos ter perfis mais marcados por uma das duas características: mais expansivos, ou mais retraídos. Sendo nada científico, diría que erramos, assim, em metade dos testes que a vida nos aplica diariamente. Ficamos na média, enfim. Alguns, porém, os mais fracos e os mais orgulhosos acabam repetindo nos dias. Teimando ou lamentando sempre que reacordam. Não importa se nasceu um dia bonito, ou não.
Já pensou se conseguíssemos sair do nosso auto-conferido perfil, para respondermos espontaneamente ao que a vida nos interroga apenas naquele momento?
Sendo agora, nem científico e nem muito poético, acabariam até as brigas de trânsito! O que quero dizer com a metáfora é simples: ninguém briga no trânsito por aquela injustiça sofrida, briga por todas as outras das quais acha que foi vítima ao longo da vida. Se de fato não foram demais, esse sujeito só pode mesmo ter um perfil expansivo. Ele parte logo para a briga! Tudo bem, a briga pode até não acontecer, se o outro, por qualquer razão, estiver exatamente no registro certo. Mas o risco é grande. Seria menor se todos buscassem o registro certo para a hora dada.
Tem hora de agir e hora de não; hora de viver e hora de morrer, e assim, quem sabe, seguir vivendo.
Para saber as horas certas de expandir e retrair, se eu fosse um sábio chinês, diria: "apenas dê ouvido ao seu coração, mas procure ouvi-lo com o coração".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Presentes da vida

Encontrei uma amiga que não via há 15 anos. Num café, me contou que casou, descasou, foi embora para Dublin, trabalhou em call center, virou puta, casou de novo, teve problemas com as drogas e com a polícia (não tem mais com a polícia), perdeu um filho, dirigiu metrô na Suécia e ganhou prêmio de barista em Nápoles. Enfim uma vida muito parecida com a minha nos últimos 15 anos. Não falo do enredo em sí, mas das descontinuidades, infortúnios e alegrias que a vida também me conferiu.
Lembrou com carinho de um livro que lhe dei de presente, uma vez, sem motivação reconhecida. Na verdade lembrou mais da dedicatória. Eu jamais lembraria: "... fique com ele. Te dou justamente por que me é querido". Disse que isso ressoou sempre, não em sua memória distante, mas em seu dia-a-dia. A questão é que quando dei o livro, ela me disse: "... mas você gosta tanto dele... vai me dar?".
Enfim... esse encontro me fez pensar, principalmente, duas coisas. A primeira é que não deveria causar espanto presentear com aquilo que se gosta. Acho que só assim se presenteia de verdade. Que significado verdadeiro pode ter para o outro, uma oferta que não significa nada para quem ofertou? (ok, sempre será possível atribuir um significado qualquer). Mas isso é como dar o que não é seu. A segunda é que, realmente, nada que fazemos ou dizemos fica impune. Amanhã, depois, ou em 15 anos, alguém sempre pode te mostrar algo que você fez ou disse e que gerou consequências. Ninguém sabe o impacto no outro da própria existencia. Ou seja, as histórias da nossa vida só terminam, mesmo, quando termina nossa vida, se é que terminam. De repente tudo começa de novo, por mais improvável que isso nos parecesse.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Pedalando na subida


No mês passado, na sala de uma suntuosa biblioteca pública, um velho mestre literato palestrava pausadamente para uma pequena plateia devotada. Defendeu num dado momento que as coisas seguem sempre seu movimento natural, mesmo quando paramos de agir sobre elas. O assunto tinha a ver com sua tese de que o escritor tem que aprender a ficar calado quando escreve, pois uma boa história sabe exatamente o que quer de quem segura o lápis, qualquer intromissão além do estritamente solicitado estraga o texto.
A audiência trocava consigo mesma sorrisos de aprovação e adimirados levantares de sobrancelhas. Houve quem deixou escorrer uma ou outra lágrima pela certeza de que sorvia toda a sabedoria de um sábio moribundo. E de fato foi mesmo a última aparição pública da sumidade. Sentimos todos.
Concluiu então o raciocínio dizendo: "o sea, és como la vida misma, no le importa un carajo lo que hacemos nosotros para intentar obligarla."
Não houve tempo para aplausos, o que tornou a situação mais intimista e adequada. Logo o mediador da mesa tomou a palavra de forma também adequada e a abriu para a plateia. Enquanto se processava um teatro de inseguranças e vaidades, a voz segura e tímida de um jovem escritor tomou o ambiente: Boa noite. É mais um comentário do que uma questão... Bem... eu tinha que ter ligado para minha namorada há meia hora, não liguei porque preferi não deixar o auditório. Dessa ligação dependia o nosso encontro de hoje. Bem... ele não vai acontecer... Pois é... eu compartilharia o riso geral se não fosse quem é!... Mas, enfim, o que queria dizer é que, se ligar ou não ligar leva a encontrar ou não encontrar, o que faço ou não faço afeta diretamente a vida que eu levo. Ou não?
Bueno... és exactamente eso lo que quero dizer: descendo uma ladeira, alguém precisa pedalar una bicicleta? Mas e no plano, o na subida? Pensaran vocês. Ora... se você não pedala no plano ou na subida, você simplesmente cai. E o que mais la vida indiferente poderia reservar al comemierda que no pedala una bice en la subida?!

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O tempo do outro

Einstein disse, não sei se compreendi, que não há como medir o tempo se não for em relação ao espaço. Para saber que o tempo está passando olhamos para o deslocamento do sol, para o avançar dos ponteiros do relógio, para a areia que desce pelo gargalo da ampulheta, para o novo X no calendário, ou para o que resta da vela que derrete. Sempre o espaço é a referência.
Parece que a tese revolucionária derivada disso é que não há como verificar a passagem do tempo de forma objetiva se não apelarmos para o espaço, fora isso, o passar do tempo é subjetivo. Depende de como se sente transformada cada vítima do viver, a cada momento vivido. Passam meses e podemos nos sentir iguais, ou  reconfigurados completamente pela vivência de alguns poucos instantes. Portantanto, por uma razão ou por outra, é relativo mesmo o transcorrer do tempo.
Penso que o desencontro de pessoas que se amam tem muito a ver com isso, com o peso relativo que as experiências compartilhadas tem para a modificação de cada um dos parceiros. Muitas vezes avança veloz o tempo para um, enquanto o outro permanece "e vice versa, ou não", como diria Gilberto Gil.
Atenção e respeito para com o tempo do outro, me parece um bom conselho para quem deseja seguir acompanhado na vida por uma companhia escolhida.
Uma vez, escalei um pico com minha companheira escolhida. Ela cansou mais, eu menos. Esperei, puxei, empurrei e chegamos juntos ao alto. Foi linda a visão! Desfrutamos juntos e por isso foi linda.
Outras vezes a escalada é mais tortuosa e os cansasos extremos e individuais se revezam sem que nenhum tenha forças suficientes para tracionar o outro. Nesses casos é melhor reavaliar o próprio tempo, mas sem esquecer o tempo do outro. Se não for assim, o êxito individual pode proporcionar uma bela visão, mas nunca tão bela quanto aquela que se compartilha com quem se ama. Se não for assim, parar no meio do caminho sempre será derrota e não apenas uma pausa para retomar o fôlego, compartilhar a água e, quem sabe, decidir juntos, voltar.

domingo, 5 de junho de 2011

O diabo no elevador

Não creio que seja mentira. Tenho boas razões para acreditar.
Disse meu amigo que, uma noite dessas, estava tão triste e tão chapado que realmente não sabia se ia deitar, ou se pulava do décimo segundo andar. Em meio à dúvida percebeu que estava sem cigarros, pareceu-lhe essa, uma questão mais importante. Adiou a decisão sobre se o sono circunstancial ou se o eterno e tomou o elevador.
No meio do trajeto descendente, ele não sabe dizer em que andar, entrou sem qualquer pirotecnia, o diabo em pessoa. Segundo ele, não tinha chifres. Estava de terno de linho cinza chumo e sem gravata,  foi relativamente simpático. Não deu pinta de satanás. Não até que meu amigo olhasse para os seus pés, - o elevador é um dos poucos lugares onde se olha para os pés das pessoas - parece que tinha mesmo pés de cabra. De acordo com o meu amigo, a visão da barra da calça amassada roçando aqueles gambitos peludos acima do casco foi tão aterrorizante que ele literalmente se cagou inteiro.
Já ciente de que era o capeta, contou que pela primeira vez na vida teve o ímpeto de apertar o botão de emergência do elevador. Não deu tempo, a descida aumentou de velocidade, paralizou seus movimentos, pareceu-lhe queda livre.
Apavorado, olhou então para os olhos vermelhos do danado e eis o diálogo entre os dois:
Está caindo!?
Não, apenas descendo.
Está rápido demais!
É assim mesmo.
Você é o diabo!?
E você, quem é?
Você vai me levar para o inferno!?
Quando tomei o elevador você já estava.
Eu não quero ir, pára, por favor!
Aonde quer descer, onde quer parar?
No... térreo.
Não estará mais abaixo o seu veículo?
Sim... mas... vou andando.
En†ão melhor apertar o botão do térreo. E melhor tomar o elevador correto da próxima vez.
Mas que diabo de elevador é esse, então!?
Isso mesmo, é o meu! E ele só vai parar no térreo para que você desça, por que não estou de serviço agora, vim apenas visitar minha irmã do 83. E também porque não estou suportando o seu maldito cheiro.
Segundo o relato do meu amigo, quando ele se deu conta de si, já estava na calçada do prédio. Disse que ficou viajando mais um pouco na história de ter sido não apenas apavorado, mas também humilhado pelo diabo no elevador. Pensou em desistir dos cigarros, mas acabou se arrastando até o bar como um indigente mal cheiroso.
Por que ele mentiria numa coisa destas?

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Filho pródigo



Era uma vez o melhor dos sonhos. Era o melhor porque além de perfeito, parecia tão real que ninguém diria que era sonho. Nasceu numa quinta-feira encantada, todos os sonhos nascem em algum momento encantado, mas só o melhor deles nasce numa quinta feira. Tê-lo em minha manjedoura era o maior dos privilégios. Tornei-me devoto dele. Bem nutrido, o melhor dos sonhos cresceu com vitalidade, ficaram no seu rosto, é claro, algumas cicatrizes da infância. Assumi minhas responsabilidades e me penitenciei pelos equívocos na criação.
O melhor dos sonhos, na meninice, continuou inquieto e inquietante, ganhou, por isso, novas cicatrizes. Eu seguia orgulhoso, responsável e penitente.
Na adolescência, o melhor dos sonhos se expandiu, ganhou o mundo e adiquiriu postura. Perdi qualquer controle sobre ele, aliás, deixei que me ensinasse, me ensinou. Foram dias incríveis!
Ele já era adulto quando me convenceu de que minha vida estava errada e de que era a hora de seguir o caminho que ele me mostrava. Embora já seguisse, entendi, e arrisquei mais; ele estava certo! Era mesmo o melhor dos caminhos e vi, finalmente, a lindeza da vida pelo seu prisma. Já não sabia mais o que via se ele não me dissesse.
Um dia, faz pouco, o melhor dos sonhos simplesmente foi embora. Não deixou nem mesmo uma carta ou mensagem, simplesmente foi. Deixou-se diluir no universo.
Talvez volte, talvez não. Talvez volte irreconhecível, talvez não. Mas fico tentando ver na cara de cada sonho que passa se ele não é o melhor deles. Vejo que não. E não paro de me perguntar: "onde foi que eu errei com esse menino?".
Desnecessário dizer que, ao filho pródigo, a casa estará sempre aberta.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Osbama: "now, we really can"


Preciso dizer aqui algumas coisas que tenho dito por aí sobre o fim do duelo entre Osama e Obama.

1. Morreu mesmo o primeiro. Não tenho dúvidas, mesmo que o corpo não bóie. Parto do princípio que se o presidente dos EUA falou de madrugada que morreu, então morreu. Não que seja devoto, longe disso, simplesmente sei, mais ou menos, o que está em jogo. Americanos toleram, às vezes gostam, de presidentes canalhas, mas não suportam canalhas mentirosos. É assim desde George e nem Bush saiu impune. Disse que havia armas de destruição em massa e invadiu. Não havia, mentiu. Renovou com isso o espírito democrático do povo que, sim, podia e Obama se elegeu, não pode mentir.
2. Não capituraram e julguram, porque não. A encarnação do mal não precisa de julgamento. Tem que ser muito politicamente correto para sair em defesa de tratamento humanitário ao Diabo. Claro que não creio em diabos (seria muito desvantajoso para quem não cre em deuses), mas Osama caprichou em suas maldades. Além disso, quando já era mau, foi amigo de seus atuais inimigos. Ninguém gostaria de ouvir o que ex-amigos, agora inimigos, tem a dizer a nosso respeito.
3. Tem coisas que até podem ser explicadas pelo seu conteúdo, mas não pela sua forma. Tenho ideia do que soldados de qualquer época podem fazer quando capituram um inimigo, ou para capiturar um. Mostrar isso pode obscurecer o brilho da façanha e não o contrário. Melhor deixar a coisa por conta da imaginação da mídia e só alimentar com alguns detalhes que não permitem desvendar o enrredo. A mídia agradece e a informação perde, como quase sempre, para o entretenimento.
Isso é só mais uma hipótese para a falta de transparência do caso.
4. Não acredito em nova onda de terrorismo. Talvez um ou outro homem bomba. Obama sabe melhor do que eu: com uma década de pesados investimentos militares em tecnologia de combate ao terrorismo; com o retrocesso dos direitos civis pelo mundo (ligações gravadas e correspondências violadas); com quase todos os países que poderiam servir de QG para o terrorismo de grande escala "dominados"; com o Oriente Médio gostando de democracia; com o desprestígio atual da Al Qaeda, que chegou a ser festejada por intelectuais e gente boa equivocados... as nações estão hoje mais preparadas para terrorismo do que estavam no 11 de Setembro.
5. Ao chamar para sí a responsabilidade pela morte de Osama, Obama quis marcar seu protagonismo no fim e não no começo de uma temporada de terrorismo. Caso contrário seria cabo eleitoral de um republicano no ano que vem. Ninguém se convenceria de que o bom Obama pode ser mais durão do que um texas ranger para lidar com essa gente.
6. Com isso está posto o argumento da campanha democrata que veremos: now, we really can. "Se não cumpri ainda com as expectativas do povo americano, é porque tínhamos a 'herança maldita' do terrorismo para adiministrar. Agora que matei a praga, posso trabalhar, como sei, sabendo que minha gente está segura. Votem em mim".

sábado, 7 de maio de 2011

Fingindo Valentia



Às vezes perdemos algumas batalhas nas nossas guerras particulares contra a infelicidade: amores sólidos desmancham-se nos ares; contratos meticulosos de amizade são revogados por leis maiores; desonestos são recompensados onde a vaia é inútil; celebrações arquitetadas se revelam sacrificantes ao celebrado; o crédito não é suficiente nem para aquilo que não devia apelar ao crédito; é negativa a resposta do cliente que ainda não era cliente; falta o álcool sem que o delírio necessário esteja completo; o carro não pega nem com a ajuda dos vizinhos; a lâmpada do banheiro está mesmo queimada; embolorou a última desejada fatia de bolo da geladeira; o compromisso do dia seguinte é antes do que se imaginava; as palavras não expressam suficientemente os urgentes pensamentos; a solidão do momento obscurece a ilustração do combatente.
Cada uma delas é apenas uma simples batalha perdida. Cada uma com sua importância relativa, mas, como dizem: nenhuma é a derrota definitiva. Não vence por isso o inimigo.
Só que às vezes todas essas batalhas se dão ao mesmo tempo. E às vezes todas essas derrotas vem ao mesmo tempo. Nesse caso, como não conceder em depor as armas? Como não se render à tristeza?
Fingindo valentia! Talvez isso confunda o inimigo.A guerra contra a infelicidade às vezes é guerra de guerrilha! Começa parecendo perdida.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Recomeçar não é começar


Se os começos são sempre tão intensos, promissores e fascinantes, por que, então, recomeçar é tão difícil?
Deve ser porque diferente do começar, o recomeçar pressupõe o abandono do que era. E, fosse como fosse, nós já sabíamos o que era. Mesmo que não estivéssemos gostando muito do final (só depois sabemos que era mesmo o final), o caminho percorrido nos havia conferido algumas ilusões de certezas. Algumas raizes de nós mesmos já haviam se infiltrado naquele chão.
Deve ser porque, o começar é o solo virgem a colonizar e o recomeçar, uma espécie de desterro. Somos expatriados de onde tínhamos hinos, bandeiras, língua, causas e irmãos patriotas. Exilados da terra em que nasceram nossos filhos e enterramos nossos mortos.
Deve ser porque, o começar é só futuro e o recomeçar, repleto de lembranças. Caminhos, sons, acordos, perfumes, sonhos compartilhados, contatos da pele, visos e sussuros que invadem insessantemente a mente e o corpo de quem os precisava puros para poder recomeçar. Saudade paralizante.
Deve ser porque o começo é desprovido de esperança e, para quem já começou mas se esgotou, a esperença é sempre aquilo que insiste em não morrer.
Recomeçar é começar com alguma propensão a continuar. E talvez, continuar possa mesmo ser o futuro de quem recomeça. Esperança de novo! Ah! Que vitalidade ela consegue manter!