segunda-feira, 26 de abril de 2010

Civis do Pensamento


Ilustração: Jo Fevereiro

 Acho que estou perdendo o prazer de discutir. Falo de discutir no sentido de argumentar e ouvir argumentos afim de que os pensamentos originais sejam aprimorados. Percebo que essa prática, exercitada sempre com especial devoção, traz mais incompreensão do que entendimento, mais mágoa do que elevação.
Na realidade não é exatamente como vou tentar descrever, mas é quase. Quando discuto é como se as idéias tivessem autonomia. Como se não importasse o seu sujeito. Não que elas não carreguem consigo as minhas próprias vontades e desejos, mas a porção disso costuma ser menor. Trata-se mais do prazer, puro e simples, de assistir à batalha dos pensamentos como a gladiadores numa arena. Vale a beleza de cada golpe e de cada esquiva; valem o balé que os prenunciam e a bravura dos pensamentos mais débeis tentando resistir. Mas, nesse caso, não se trata de ganhar ou perder. Na verdade, ninguém perde.
Pois bem, mas esse espetáculo só é possível quando de fato não existe interesse subjetivo nem de uma parte, nem de outra. Quando não se está tentando conduzir o outro às cordas para com isso triunfar, provando que é sua, finalmente, a razão. E quando é que temos a oportunidade de discutir nessas condições? Isentos de nossos interesses com pessoas isentas também de seus interesses? Somos todos mais feios, barrigudos, malvados, burros e pobres do que gostaríamos. É bem provável que essas nossas inseguranças estejam sempre presentes no duelo dos argumentos. Perder a discussão é, então, fracassar de novo.
Estou certo de que o apreço cultivado pela argumentação, no meu caso não está vinculado a objetivos práticos. Não sou advogado e nem publicitário. Não ganho dinheiro e nem prestígio com a prestidigitação das idéias no campo profissional. Mas ao tentar praticar esse esporte com as pessoas do meu entorno, acabo perdendo energia, tempo e afetos.
O grande problema é que quase todo mundo, em algum momento, quer falar sério sobre algum assunto e eu, então, penso que se trata de um honesto en gard vindo de outro valoroso espadachim. Que nada! É outro civil do pensamento, que se acha mais feio, barrigudo, malvado, burro e pobre do que eu. Resultado: ao primeiro touché, lança o florete ao solo e saca logo a pistola. Sou obrigado a abandonar o embate tentando simplesmente preservar a pele. Mesmo assim, ainda fica a impressão de que sou impertinente, frio, implacável e, obviamente, sem razão.
Desnecessário dizer que reconheço as pouca-pouquíssimas exceções, mas como não quero esgotá-las por completo, pretendo apreciar, com mais moderação ainda, esse já tão raro prazer.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A doença está na certeza e não na dúvida


Ilustração: Jo Fevereiro

Quem está feliz o tempo todo, ou é bobo, ou atingiu um estado de beatitude que eu não consigo alcançar. Vale quase o mesmo para quem está triste o tempo todo, ou é bobo, ou chegou a um nível de descrença que eu não quero chegar.
Os não bobos estão entre nós, oscilando assustados entre horas tão tristes e outras horas tão... tão felizes. A vós eu dirijo essa reflexão.
Não odeie tanto sua tristeza, nem leve-a tão a sério como gostamos de fazer. Aprenda com ela sobre você mesmo, guarde isso. Repare como a próxima tristeza igual, já não será mais tão triste. Ficamos mais sutis para com as tristezas. Não ame tanto, também, suas alegrias. Pelo menos não tanto, a ponto de se apaixonar por elas. Elas são boas, mas não são tudo. Guarde isso também. Ficamos menos reféns delas. Deixe que venham as tristezas e as alegrias quando elas tiverem de vir, sem o desespero das primeiras e nem a obsessão pelas últimas.
Quero dizer, assim, que essa capacidade de transitar confuso entre os polos é um sintoma da saúde mental das pessoas e não o contrário. A doença está na certeza e não na dúvida, na fixidez e não no movimento. Henri Bergson fala do equilíbrio como algo dinâmico e não estático.
Exercite regularmente, portanto, tristezas e alegreias na medida em que isso não te provoque muita dor, pois ainda não pensei em alongamentos para evitar esse tipo de distensão.
Vivencie com temperança e sabedoria seus conflitos e suas oscilações, porque, a menos que você enlouqueça completamente, a tendência é que você os tenha até o último suspiro.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Jornalismo de Classe Média


Ilustração: Jo Fevereiro

Costumava atribuir os maiores males da imprensa brasileira à estrutura da própria e a sua participação na Indústria Cultural. Não descarto essa questão: são mesmo grandes conglomerados empresariais, ou aspirantes a, engajados no próprio business e na reprodução dos discursos e valores hegemônicos.
Mas, pensando um pouco na Microfísica do Poder de Foucault, tenho sentido maior incômodo ao perceber outros nós dessa grande teia. Um, particularmente, tem me agastado. Ando desconfiado que, passada uma era em que as redações eram povoadas por um operariado da informação minimamente consciente de suas possibilidades e de seu papel contra-hegemônico, hoje a notícia é produzida, quase exclusivamente, por uma pequena burguesia carreirista, mal-informada e bastante conservadora, quando não reacionária.
Cito como exemplo uma questão controvertida: a cobertura dos casos de pedofilia no clero. Vejo que na maior parte das matérias falta a mínima compreensão do problema real. A ênfase costuma reacair sobre a moralidade de padres, bispos e papas. Cobra-se posturas desses agentes; explora-se a indignação das pessoas e, às vezes, apela-se à psicologia de botequim para agravar os delitos praticados. Está errado. Não são essas as questões que deveriam absorver a energia de jovens jornalistas.
O cardeal Joseph Razinger não fez mais do que a sua obrigação ao compor com padres pedófilos quando ainda não era papa. Os bispos que fazem isso hoje, idem. Coisas assim sempre, repito, sempre aconteceram, vide Giovanni Bocaccio. Se o catolicismo atingiu o segundo milênio de existência foi justamente porque, ao longo da história, cagou e andou para o que pensavam os homens e suas instituições de cada tempo. A lógica sempre foi a de absorver com a mais absoluta parcimônia, se não tiver outro jeito, as demandas de cada tempo. Os ruídos se dissipam; as modas passam; as ideologias sucumbem e a igreja continua.
Pense na Reforma Protestante. Parte da humanidade protesta veementemente, e o que faz a igreja católica? Reafirma seus valores. E assim foi com as guerras, com as revoluções liberais e com as socialistas. "Tudo isso vai passar, como sempre passou e quando passar, eles voltarão, porque só aqui encontrarão certezas maiores do que as dos seus tempos sempre confusos" devem dizer acertadamente os dirigentes católicos, que operam dentro de outra temporalidade. "Não à camisinha e não ao aborto", seja em que tempo for. Trata-se apenas de manter a coerência interna e não a coerência com qualquer outra verdade científica, tão volúvel desde Ptolomeu até Einstein.
A qual forum estará então submetido um padre que cedeu às tentações que não pouparam nem Aquiles? Para isso existe o direito canônico, a confissão, os deslocamentos de diocese, as penitências e o silêncio imposto. Até a excomunhão, mas só em casos inadimissíveis, não nesses com os quais estão lidando a séculos, mas só agora resolvemos questionar.
Voltando à questão principal, é ingênuo insistir em cobrar satisfações de um padre pedófilo, ou de seus superiores. Eles já se confessaram e se penitenciaram, estão em paz, portanto. Indignar-se com suas respostas é ignorância e autoritarismo. Ignorância por desconhecer com quem se está lidando e, autoritarismo, por querer que operem dentro de uma moralidade que não é a deles.
Em nosso país e em nosso tempo pedofilia é crime, ponto. Temos um Estatuto da Criança e do Adolescente, é disso que se trata. Jornalistas sem preocupação de justificar o próprio catolicismo deveriam apontar seus teclados para o poder público e só para ele, se realmente veem isso como um flagelo e não como uma oportunidade de se destacar na profissão.
Nós não admitimos pedofilia, não importa se vem da família, dos astros da música, ou de uma coorporação milenar. E é o estado democrático que foi inventado justamente para disciplinar a minoria cuja moralidade não consegue conter, por si mesma, suas pulsões anti-sociais. Que os advogados de defesa se incumbam de apurar as razões e atenuantes quando houver. Se cobrar providências é papel da imprensa e acho que é, que cobre de quem pode tomar as providências que importam.
Entendo que talvez seja muito difícil para os novos jornalistas, ampliar sua compreensão sobre os problemas do mundo; questionar a própria moralidade; perceber-se como agente histórico e rever o estado em seus papéis, ao menos nos fundamentais. Afinal, é uma dificuldade bastante recorrente em toda a classe média.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Malefícios não ideológicos da concorrência


Ilustração: Jo Fevereiro


Sempre ouço falar das vantagens que a concorrência do sistema capitalista nos proporciona. Penso que quase todas enquadram-se em três categorias: diversidade, aprimoramento e preços dos produtos. A princípio, todas elas são mesmo vantagens, mas quando examino melhor aparecem as dúvidas.
Já não sei até que ponto os diversos produtos são feitos para melhor atender as nossas necessidades, ou se, no atual estágio da competitividade, são lançados objetivando a criação de novas necessidades, até então absolutamente desnecessárias. Não quero apelar às teorias econômicas para as quais o fenômeno é evidente desde o século XIX, proponho a experimentação empírica. Até que ponto precisamos mesmo de um sabonete para lavar as mãos, outro para os cotovelos, outro para as partes íntimas e um outro ainda para o resto do corpo ainda não esquartejado pela Johnsons ou pela Natura?
Aprecio café de tipo arábica cultivado em regiões montanhosas com média torrefação, mas confesso que não sou capaz de reconhecer a diferença entre um creme dental que proteje meus dentes contra 12 doenças bucais e outro que só me proteje de 9. A ciência, nesse caso, me parece evocada de maneira fundamentalista e obscurantista. Em outras palavras, qual é a nossa real condição de reconhecer o grau de aprimoramento do produto que compramos? Voltando ao "sabão"; muitos sequer reconhecem a diferença entre um sabonete normal e outro com 50% de creme hidratante; muitos, também, percebem que não há qualquer semelhança entre eles, mas quantos sinceramente podem argumentar a favor de um outro que promete 52,3% de creme hidratante? O propagado maior aprimoramento de um produto já não nos é mais sensível. Ou estaria apenas eu, interrompido em minha sensibilidade e espírito científico por minha condição de classe? Só "investi" na minha sensibilidade sobre o café, mas não tive grana para educá-la para as sutilezas da proteção dental e da hidratação cremal, é isso? Onde iremos parar? Na cientifização e/ou estetização do consumo de absolutamente todo produto, desde o vinho até o sapólio? Matemos por dinheiro, então! Pois só assim será possível sobreviver.
Por fim os preços. Diante de tudo isso, ainda que os preços possam se rebaixar com a concorrência, vem a grande pergunta: pelo que é, mesmo... que estamos pagando com a própria vida?

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Convite ao Divã


Ilustração: Jo Fevereiro

Pessoas por quem possuo profunda admiração intelectual e afetos dos melhores já me disseram que entendem a necessidade de fazer análise, mas não fazem por achar que sua capacidade de auto-análise tem bastado, "por enquanto".
Quero compartilhar uma reflexão, recém refletida, que pode contribuir para acelerar esse processo, um dos poucos que hoje eu recomendaria a alguém que apressasse. Creio mesmo que a auto-análise basta por um tempo e que aqueles que sempre a cultivaram são pessoas bem diferentes. E, do meu ponto de vista, aquelas que mais me cativam. Creio, porém, que chega um ponto em que a auto-análise deixa de ser eficiente.
"Intuo que a razão" disso esteja mais próxima do seguinte: tem uma hora em que não queremos mais sínteses a nosso respeito. Estamos mais dispostos ou obrigados a lidar e conviver com as nossas próprias incapacidades e incoerências. O problema é que, quando pensamos sozinhos sobre nós mesmos, não nos é possível deixar de realizar a síntese, ou a reunião do que foi pensado. Seria, mais ou menos o seguinte: se eu tentar olhar para mim mesmo, para ver como realmente sou, os olhos que me verão serão sempre os olhos que queriam me ver e a visão de mim mesmo será, então, sempre alterada por eles.
Não sei se me esclareço, mas sempre posso tornar-me mais obscuro tentando: se todo objeto é objeto de um sujeito, como então poderia eu, que sou o sujeito de qualquer coisa que realize, fazer-me objeto de minha própria análise?
Acho que é por isso que Psicanálise é Psicanálise e não "Psicosíntese". Chega o momento em que não se trata mais de nos explicarmos para nós mesmos, mas talvez apenas de buscar uma assistência nessa outra fase confusa em que, para viver a vida, a razão não é mais suficiente e a religião ainda impossível.
Em síntese: "Freud não explica ninguém, nunca quis explicar!" Mas a análise pode ajudar a viver com as dúvidas que a auto-análise insistirá em tentar sanar.