quarta-feira, 24 de março de 2010

A Lição do Caracol


Ilustração: Jo Fevereiro

Estava a meio quarteirão de casa, andando meio apressado pela calçada, quando vi um caracol cruzando lentamente o meu caminho. Atenção para o que vou dizer agora: o caracol era tão grande que parecia um fusca. Não estou brincando, é verdade! Posso garantir que nenhuma substância afetava minha percepção naquele momento. Ele tinha pelo menos um palmo de comprimento e transportava sua moradia que mais parecia um desses triplex com 5 vagas e espaço gourmet que os folhetos de pré-lançamento costumam anunciar nos Jardins.
Fiquei paralisado, mesmo porque, enquanto aquele colosso de antenas colossais se arrastava indiferente, meu caminho permaneceu realmente interrompido. Tive um pouco de medo e não me envergonho por confessar, o bicho era  estranho mesmo e eu não imaginava que isso existisse, se imaginasse, seria numa ilha do arquipélago de Java, perto de onde vivem os lagartos de Comodo e outras criaturas pernósticas. Mas ali, atrás do Maksoud Plaza, era como se de repente a fronteira entre a realidade e a ficção tivesse sido rompida.  Naquele instante não me pareceu impossível que ele simplesmente me cumprimentasse pelo nome e seguisse o seu caminho; que revelasse uma profecia catastrófica a meu respeito; que me pedisse para levá-lo ao meu líder, ou que cuspisse em mim uma gosma mortal.
Assim que minha confusão mental se dissipou, num reflexo adquirido na contemporaneidade, adotei aquele ar de indiferença que aprendemos a fazer diante da diversidade, por mais diversa que ela seja, e passei a olhar se não havia alguém filmando minha reação para colocar no YouTube. Reparei se não tinha nenhum fio de nylon esticado na calçada e se os lentos movimentos do ser não revelavam alguma sincronia robótica. Uma outra vez fiquei procurando o miado de um gatinho que parecia em apuros e descobri um celular escondido na grama do jardim emitindo o som, enquanto isso o porteiro e o servente do prédio riam da minha cara. Dessa vez, não. Não havia nada.
Livre do pavor imediato e natural diante do desconhecido e do pavor secundário e social do ridículo, acompanhei o imenso caracol até que ele chegasse ao mato que almejava, com a ansiedade típica de um caracol. Esperei até que ele se perdesse no meio da relva. Depois esperei um pouco mais, olhando o rastro úmido deixado na calçada. Segui, então, o meu caminho, eufórico e maravilhado, como uma criança que viu mesmo uma coisa que nenhum adulto vai acreditar.
Passo todos os dias pelo mesmo lugar e, por mais apressado que esteja, sempre diminuo a passada para ver se encontro de novo o caracol. Não encontro, mas enquanto procuro por ele, penso que aquele bicho estranho deve estar onde queria estar, sem ter ido de pressa e sem ter ido muito longe.
Faço desse pensamento a lição que aquele magnífico caracol me ofertou.

3 comentários:

Unknown disse...

É até estranho como, mesmo depois de crescidos, algumas pessoas tem essa dádiva de conseguir olhar pras coisas mais simples com aquele olhar de criança..
Acho isso sensacional, e espero que sempre existam pessoas como você, que não se deixam ser afetados pelo mundo adulto!!

Ps: o segurança da minha rua já me pegou nessa do celular miando no meio do gramado.. Você não foi o único! hahaha

RafaZig disse...

Muito boa essa... sempre penso comigo mesmo que há muito mais beleza num pardal pousado no fio de eletricidade do que todas as coisas criadas pelo homem que nos cercam no dia-a-dia. Infelizmente essas bobagens todas, como automóveis, acabam virando fetiche e a percepção estética das coisas realmente belas vai se perdendo na ânsia da pós-modernidade...
Adoro esses bichinhos que insistem em nos lembrar o que somos realmente...
Abração e saudades mano
Rafael Ziegelmaier

RafaZig disse...

Muito boa essa... sempre penso comigo mesmo que há muito mais beleza num pardal pousado no fio de eletricidade do que todas as coisas criadas pelo homem que nos cercam no dia-a-dia. Infelizmente essas bobagens todas, como automóveis, acabam virando fetiche e a percepção estética das coisas realmente belas vai se perdendo na ânsia da pós-modernidade...
Adoro esses bichinhos que insistem em nos lembrar o que somos realmente...
Abração e saudades mano
Rafael Ziegelmaier