sexta-feira, 19 de março de 2010

Cordialidade vem mesmo do coração?


Ilustração: Jo Fevereiro

Sempre achei a cordialidade uma virtude admirável nas pessoas. Uma saudação matinal; uma porta aberta de elevador; uma prioridade concedida na passagem; um sorriso gratuito, um pequeno gesto afável. Tudo isso quando vem do cór torna o convívio entre as pessoas não mais humano, porque o contrário disso é tão humano quanto, mas pelo menos mais estético, elevado e prazeiroso. Continuo achando tudo isso. Mas ultimamente tenho sentido a necessidade de pensar um pouco mais a respeito. O conflito básico é o seguinte: em que medida minha própria cordialidade me impede de marcar posição diante de pessoas que, embora também cordiais, usam desse código para angarear cumplicidade e assim revelar, no instante seguinte, posturas e convicções que considero execráveis?
Posso exemplificar. Um dia desses uma simpática vizinha aproveitou a cordialidade estabelecida no curto trajeto entre o térreo e o nono andar para perguntar se nossa filha, de quatro meses, não se assustava com a cor da pele da moça que nos ajuda em casa. A pergunta pareceu-nos tão descabida e surpreendente que só tivemos tempo e reflexo para dizer, cordialmente, que não.
Passado o tempo, estávamos Polyana e eu absolutamente transtornados não com a pergunta da velhusca, mas com nossa insuficiente resposta. O que queríamos mesmo era ter dito: "não minha senhora, nossa filha ainda não teve tempo para ser envenenada por essa substância que a senhora acaba de flatular e faremos o possível para imunizá-la tanto da meningite e da varíola quanto desse maldito preconceito. E, a propósito, não se incomode mais em nos cumprimentar sua fascista decadente e nociva. Estamos em trincheiras opostas".
Confesso que pensamos nessa resposta em termos muito menos cordiais do que apresento aqui. Na verdade nem mesmo o cuspe na cara e a expulsão sumária do elevador foram descartados em nossa fantasia de reparação.
No dia seguinte ela nos cumprimentou com a cordialidade de sempre e já não havia mais ocasião para marcarmos nossa posição como gostaríamos, afinal, nós apreciamos a cordialidade.
Persistem assim as seguintes questões: não será esse apreço pela cordialidade o resquício de uma criação obsoleta? Em que medida a cordialidade é um vício que reprime nossa necessária expontaneidade? Estou reduzindo erroneamente a cordialidade ao simples encontro fortuito entre desconhecidos? Somos cordiais porque aspiramos o afeto de todos? Se restringirmos nossa cordialidade apenas aos iguais, seremos ainda cordiais?
Enfim, agradeço a você meu gentil leitor, mas vá às favas, se nada do que eu disse te fizer pensar no assunto.
Cordialmente,

2 comentários:

Unknown disse...

Bem........... Cordialidade não deve ser retórica, prôfe.. Na minha opinião, ela vem com o objetivo de fazer a diferença no "cordiado" (pessoa que sofre a cordialidade - hehehe), e sem pretensão de reposta imediata, sincera, positiva e à altura do gesto deferido pelo "cordiador". A cordialidade é uma via de mão única, e sem desvio de sépto.

MAS... acho que existe aê um ponto egocêntrico nessa história. Mesmo que, vez por outra, sejamos cordiais (respeitósos, amáveis, educados, singélos...), não é um "OBRIGADO" que esperamos... Mas sim um simples sentimento auto-suficiente de "Nossa, abri a porta para outra pessoa... sou o Máximo").

A propósito.... Polyana quer dizer "junção de diversas versões de uma mesma Ana??" - hahaha.. desculpa prôfe.. brincadeira!!!

Rodolfo Vianna disse...

Bom, creio que a cordialidade nasce da máxima de tratar a um outro como gostaria que fosse tratado. Cordialidade, portanto, parte do respeito. Eu respeito para ser respeitado. Porém, de cordialidade não se faz a luta de classes, mas sim de conflito. E é essa tensão que permeia as "trincheiras" opostas. Mas como avançar posições numa guerra surda, encoberta, não deflagrada? Marcando posições, sempre, quase como num xadrez - e sorrindo elegantemente. Não se pode esquecer, em momento algum, que o outro é um outro, assim como, para ele, você é. Mas isso em nada resolve o problema colocado.
"Come ananás, mastiga perdiz,
Teu dia está prestes, burguês."
(Maiakóvisky)