quarta-feira, 3 de março de 2010

O Carlos virou mendigo


Ilustração: Jo Fevereiro

Conheci o Carlos quando tinha 18 ou 19 anos, eu estava na faculdade de História. Era um tempo em que tudo parecia mais simples: de um lado estavam as mazelas do mundo e o capitalismo como arquiteto delas; do outro, a vida bacana que o socialismo parecia poder proporcionar. Entre os dois, apenas uma questão de vontade ou de falta de.
Carlos era executivo de uma multinacional americana. Rico, culto, bom e cheio de maneiras elegantes. Mais nobre do que burguês. Meu ódio de classe não foi capaz de abarcá-lo e acabei me tornando seu amigo. Que bom!
Um dia ele me disse que havia cansado de vender pó de arroz para quem não tinha nem arroz para comer. Sabia a resposta certa num certo treinamento em Nova Iorque, mas deu, de propósito, a resposta errada. O dilema proposto era o seguinte: Um subalterno era a pessoa indicada para abrir uma nova filial em outro estado. Isso significava uma considerável promoção com aumento significativo de salário. A filial seria desativada seis meses depois por decisão estratégica e o subalterno seria desligado sem mais. O empenho total do funcionário era condição absolutamente necessária. Feliz e lisonjeado, o subalterno comenta com o executivo, informal e ingenuamente, seu projeto de hipotecar a própria casa para proporcionar à família uma vida mais próspera e melhor no novo estado. Pergunta: expor ou não, ao funcionário, os reais objetivos e intenções coorporativas?
Carlos, impertinente, mais do que demitido, acabou excomungado pelo mercado. Perdeu todo o seu status e, com ele, a família e a vida que lhe parecia sua. Foi cursar, aos cinquenta anos, Sociologia no prédio ao lado do meu. Tornou-se referência para mim.
Chegamos a trabalhar juntos em alguns projetos que nos renderam pouco dinheiro e muito prazer. Aprendi com ele a apreciar a música clássica; a investir em minhas metáforas literárias e a sair dignamente de um restaurante quando os preços do cardápio são além das minhas possibilidades. Aprendi bem mais.
Há cinco anos perdi o contato com o Carlos por conta de nossa falta de talento para as convenções e pela similar apreciação da liberdade própria e do outro.
Na semana passada, chamou-me a atenção um homem que revirava o lixo em frente ao Ponto Chique do Largo do Paissandu. O mendigo tinha calças de veludo e um sapato marrom com fivelas que um dia foram douradas. Num certo momento percebeu que seu comedido garimpo dificultava a passagem de uma senhora que, escorada em sua bengala, ensaiava alargar o trajeto para desviar da cena/obstáculo. Eu vinha logo atrás e notei que o desgraçado não apenas interrompeu sua pesquisa, mas também brindou a senhora com um sorriso gentil e respeitoso, abrindo caminho para o seu lento deslocamento.
Não vi se ela retribuiu, mas vi que era o Carlos. Ficamos frente a frente e meu reflexo foi o de abrir os braços. O dele também, mas no instante seguinte ele olhou para si mesmo e preferiu interromper o abraço. Senti como se tivéssemos nos abraçado assim mesmo. Ficamos alguns instantes nos olhando sem que nada fosse dito, quase nos abraçamos pela segunda vez. Só então eu falei: "Carlos, Carlos, meu camarada, como foi que isso aconteceu?". Ele respondeu com o seu sorriso habitual: "E como não aconteceria, meu querido amigo?". "Pois bem, meu guru, e o que eu faço agora? Te ofereço um almoço... algum dinheiro... moradia provisória... emprego...?". "Um café, um café expresso e curto, se você puder e não se incomodar".
Encostamos no balcão do Canelinha sob os olhos severos e contrafeitos do barman. Carlos bebeu seu café como um diplomata dinamarquês. Tive vontade de fazer-lhe mil perguntas, mas não fiz nenhuma, esperei que ele acabasse o seu precioso café, para então começarmos a tratar de como resgatá-lo de tão indigno infortúnio. "Então, meu amigo - disse ele ao depositar a xícara no balcão - como está sua vida? Você já entendeu porque o Eric Satie é um compositor frívolo? Assumiu-se como escritor que é? Deixou de se preocupar com o julgamento alheio sobre suas atitudes? Ou simplesmente parou de pensar em tudo isso?".
Minha resposta com a cabeça foi negativa para todas as perguntas. Carlos, então, estendeu o braço sobre o meu ombro e prosseguiu "não se preocupe, meu caro, isso virá com o tempo, mantenha a vitalidade e a serenidade, é assim mesmo. Se um dia precisar conversar, estou sempre por aqui nesse horário".
Diante do silêncio restabelecido, Carlos quase levou a mão ao bolso, mas rendeu-se a sua condição erguendo meio constrangido as grisalhas sobrancelhas. Paguei a conta com dinheiro trocado e saímos do café. Cada um em uma direção. Parei e virei para trás "Carlos! - disse alto quando ele já se ia - eu encontrei aquela mulher e temos uma filhinha". Ele também parou e se voltou, agora com um sorriso maior e resplandescente - "Ah! Isso é bom, meu amigo. Isso é mesmo muito bom!". Seguimos então nossos caminhos.
O Carlos virou mendigo e é, ainda, uma referência.

3 comentários:

Rodolfo Vianna disse...

Eita, Newton

Lembro-me que vc me contou sobre ele, em algum dia. Mas que loucura esse encontro, não? E agora? Uma questão difícil se coloca para vc, não? Não sei se recorda do livro A Queda, de Camus, e de toda a angústia do protagonista... se não se lembra, busca ler de novo. É, meu querido, como diza Belchior: A vida, ao vivo, é muito pior.

Newton Duarte Molon disse...

Relendo o texto, me emociei. Desta vez contemplando simplesmente a imagem que o Jo Fevereiro preparou para o texto.

crbrasil disse...
Este comentário foi removido pelo autor.