quarta-feira, 16 de junho de 2010

Uma boa lembrança do alto

Uma vez acordei numa cabine de trem no Vale da Osta na Itália e me deparei com um senhor de chapéu e bengala sentado no banco da minha frente. Tomamos, juntos, um mágico café solúvel e ficamos logo grandes amigos. Ele me falou de sua participação na Primeira Guerra, do Patuá, dialeto da região, e me explicou sobre os telhados das casas. Não me lembro bem da explicação, mas não esqueço do reflexo do sol nascente na neve que se depositava naqueles telhados, pareciam casas de maçapão banhadas com calda de caramelo. Eu também estava nascendo, tinha só 18 anos.
Descemos, ambos, em Courmayer - acho que era esse o nome da vila -, eu não tinha destino, ele visitava uma filha. Ele me convidou para o almoço. Eu, mesmo sem destino, já era arredio com os convites, agradeci declinando. Ele entendeu, compreendeu.
Identificando-me, então, como andarilho do mundo, o que me chocou e fascinou, disse que os andarilhos ganhariam mais se tivessem disposição para escalar as montanhas. Nessa hora apontou para uma delas. Falou que, do alto, a solidão é a mesma, mas o silêncio é maior e visão mais ampla. Eu não disse nada mas, no mesmo instante, me convenci que deveria subir ao alto da pequena montanha que o seu indicador indicou.
Quando nos despedíamos o improvável se fez presente. Perguntou meu velho amigo qual era o meu nome, não, meu sobrenome. Ao responder, lancetei seus olhos, dos quais escorreram, não, jorraram lágrimas.
Surpreendeu-me o velhinho explicando que, agora sim, nosso encontro fazia sentido, pois sua maior perda durante a guerra tinha sido o seu grande amigo Molon.
Subi com sacrifício aquela montanha. Lembro-me da fadiga e dos pedaços de gelo que mataram a minha sede.
Lembro-me do menor ruído que já não ouvi e de uma visão que, em sua amplitude, tornou invisível, naquele momento, meu mais querido amigo.

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