terça-feira, 10 de agosto de 2010

Apontamentos não cínicos sobre a mentira


Ilustração: Jo Fevereiro

Quando fui catequizado, ensinaram que um dos dez mandamentos de deus era "não levantar falsos testemunhos", lembro que simplificavam o regulamento dizendo que tratava-se de "não mentir", mentira! Falso testemunho é uma coisa, mentira é outra. Etimologicamente testemunhar tem a ver com comprovar, o prefixo tem a ver também com testículos, como soube recentemente (prova de masculinidade). Não há nos mandamentos nenhuma proibição à mentira, até porque ela seria inócua. Não que as outras não sejam, mas essa seria inócua demais. Não é possível manter-se absolutamente fiel à verdade, seja porque não queremos; porque não conseguimos, ou simplesmente porque não há verdade.
Resolvi registrar aqui algumas ideias sobre a mentira que talvez desenvolva numa próxima vida, nessa provavelmente não terei tempo.
Acho que existem mentiras de tipologias diferentes, algumas inúteis, outras nocivas, outras indiferentes, outras inevitáveis... Poderia classificá-las mais ou menos assim: a) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre mim mesmo; b) mentiras que reforçam minhas fantasias sobre os outros; c) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre mim e d) mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos. Exemplificando respectiva e sumariamente: a) como sou bondoso, não posso ter tido esse pensamento maldoso, então não tive mesmo; b) Como as pessoas são bondosas, essa pessoa não pode ter sido maldosa, então não foi mesmo; c) Como suponho que o outro me tem como bondoso, não posso demonstar que tive esse pensamento maldoso, então não tive mesmo, e d) Como suponho que o outro tem os outros por bondosos, os outros não podem ter sido maldosos, então não foram mesmo.
Desses quatro tipos de mentiras, acredito que o primeiro seja o mais trivial, tão trivial que o próprio sujeito não se reconheceria mentiroso nem sob tortura. O segundo também é parecido, tão comum que se confunde com a própria visão de mundo do sujeito, tratam-se de mentiras coletivas em que o mentiroso nunca está só. O terceiro exige um pouco mais de malícia e costuma trazer mais dividendos instantâneos, com o tempo soi gerar conflitos internos e muito provavelmente, ao final, um balanço negativo sobre a vida que se viveu.
O quarto tipo, de todos, me parece o mais complexo e também aquele sobre o qual não encontro solução na verdade. Ou melhor, a verdade não parece eficaz para contraditá-lo. Lembre-se que refiro-me aqui à "mentiras que, suponho, reforçam as fantasias dos outros sobre os outros e sobre eles mesmos". Nesse caso, enquanto o outro não quer encontrar a saída para o labirinto dos enganos, oferecer-lhe a realidade é estar disposto a ser inconveniente, desprovido de sensibilidade, delirante, insuportável e, obviamente, mentiroso.
São só apontamentos não cínicos sobre o tema.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Ler seus textos me faz MUITO bem.. por alguns minutos, acredito que existem pessoas que realmente valem a pena! Obrigada Newton.. de coração! Se todos fossem um pouquinho "Newton Molon", nossa.. perfeito! =]