sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tragédia de Acertos


Ilustração: Jo Fevereiro

Um dia desses andava pela calçada da Paulista ao lado do MASP quando aconteceu aquilo que sempre acontece: vinha um senhor em minha direção, ou ia eu em direção a ele; pendi para um lado que foi o mesmo lado para o qual ele pendeu, ou vice-versa; pendi, então para o outro, no mesmo instante em que lhe ocorreu a mesma solução para evitar o choque, mas também pode ter sido o contrário; tivemos, por fim, que parar frente a frente. A acareação durou alguns instantes.
De minha parte, toda vez que isso ocorre, tenho a mesma curiosa reação: tenho vontade de rir e penso que acabei de angarear um cúmplice anônimo para nos divertirmos juntos com essa pequena comédia de erros das quais o cotidiano está repleta: todos estavam certos, mas deu errado. Nenhuma consequência grave, apenas a constatação de que ambos erramos, tentando acertar.
Qual o quê! Fui vítima de uma tremenda descompostura! O sujeito olhou-me com ódio e rosnou algo como: "porra, você tem que passar pela direita!". Fiquei chocado. Enquanto ele se desvencilhava para continuar apressado o seu caminho, só consegui perguntar, meio sem graça: "mas que regra é essa?". Ele nem ouviu, seguiu blasfemando.
Continuei o meu caminho até a Augusta. Durante o trajeto fui, um pouco incomodado e triste, pensando e sentindo várias coisas.
Pensei primeiro que talvez ele tivesse razão e que eu não conhecia as normas corretas da caminhada. Já tinha aprendido no metro de Moscou a permanecer à direita na escada rolante se não estivesse com pressa, mas ignorava semelhante código para as calçadas paulistanas. Podia fazer algum sentido, mesmo que eu sequer tivesse entendido exatamente o código violado. Será que eu preciso andar sempre à direita, tanto a pé quanto de carro? Depois pensei que não, que nosso trânsito pedestre ainda não estava tão regulamentado. Que horror se um dia estiver, pensei no Metrópolis do autríaco Fritz Lang. Concluí que se tratava, então, de uma lei pessoal, dessas que se inventa na hora para legitimar uma conduta qualquer.
Esqueci o fato, meu incômodo foi diminuindo na medida em que ia andando e pensando nisso, no quanto inventamos regras que só valem para algumas situações e só para nós mesmos. Pensando no quanto somos meio covardes para encarar a vida quando não há regras, nem justiça e nem injustiça, só a vida mesma com suas fatalidades. No medo que temos de estar errados e na nossa capacidade de inventar o certo para tornar acertadas nossas ações ao nosso próprio olhar.
Cheguei ao meu destino convicto de que assim fica difícil o convívio: se todo mundo está correto em tudo que faz, aquilo que poderia ser uma comédia de erros, ou vira tragédia de acertos, ou vira farsa.
Tenho um amigo que diz que nunca conheceu um sócio pilantra que lesou o outro sócio, só conhece os sócios injustiçados e trapaceados que faliram vitimas do vilipendio do outro sócio. Onde estão os sócios lesivos então? Será que não foi apenas e simplesmente mais um negócio da vida que deu errado?
Será impossível viver sem culpa e sem culpar alguém? Não seria o equívoco, às vezes, como o chover, um verbo sem sujeito? Algo para tão somente contemplar, quem sabe para sorrir e esperar passar, pela direita ou pela esquerda?

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